Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Livros traçam retrato da boemia carioca em escrita crua e precisa

O projeto Biblioteca Rio 450, criado pela Prefeitura do Rio neste ano de data redonda para relançar títulos importantes para a história da cidade, permitiu à José Olympio reeditar "Lapa" (1936) e "Noturno da Lapa" (1964).

Estava esgotado havia três anos o box com os dois livros de Luís Martins (1907-1982), este escritor e crítico de arte menos lembrado do que mereceria. Apresentação e notas são de Ruy Castro.

Divulgação
Luis Martins, autor de
Luis Martins, autor de "Lapa" e "Noturno da Lapa", em 1936.

O autor nunca deixou de ser severo em relação a "Lapa" –a despeito dos elogios de Carlos Drummond de Andrade, Antonio Candido e tantos outros. Já na primeira edição, publicou uma "nota absolutamente necessária", na qual praticamente se desculpava pela "brutalidade da linguagem", pela "amarga revolta".

PROSTITUIÇÃO

O tema do romance é a prostituição, presença forte na Lapa carioca das primeiras décadas do século 20. A destruição física e emocional das mulheres é retratada com crueza. O vocabulário é corajoso para 1936: "cabaço", "trepar", "veado".

O narrador, Paulo, é um rebelde sem causa que aprende nas ruas que a vida é pedreira. Amadurece e resseca. "A prostituição tinha me estragado", registra no final.

Lido hoje, há algo de moralista e até melodramático em "Lapa". Mas a força de suas cenas e palavras permanece.

O livro foi "denunciado" como subversivo e imoral pelo literato e político conservador Carlos Maul. Parte da edição foi apreendida em 1937 por um governo Vargas que iniciava a ditadura do Estado Novo.

TARSILA

Martins fugiu para São Paulo e se escondeu na fazenda da pintora Tarsila do Amaral, com quem viveria por 17 anos –embora ela fosse 21 mais velha do que ele, outro choque para a época.

É de São Paulo, onde viveria até o fim, que Martins escreveu "Noturno da Lapa", relembrando sua lira dos 20 anos, os tempos da boêmia no bairro do centro do Rio.

Quem narra, então, é um homem de 57 anos, suave e bem-humorado, nada parecido com o Paulo de "Lapa" –que ele garantia não ter nada de autobiográfico.

Permite-se até a autoindulgência, reproduzindo elogios que lhe fizeram. Esses momentos amolecem sua escrita precisa, mas são humanamente compreensíveis.

MORAL PRÓPRIA

Os capítulos são memórias das noitadas vividas com Rubem Braga, Moacir Werneck de Castro, Lúcio Rangel, Carlos Lacerda –que ainda era socialista– e muitos outros que encorparam nos anos 1930 o mito da Lapa como lugar de moral e costumes próprios, um enclave dentro da cidade.

Aqueles se misturaram à geração dos anos 1920 (de intelectuais como Ribeiro Couto, Jayme Ovalle, Villa-Lobos, Sérgio Buarque de Holanda etc.), para logo sucedê-la. "A Lapa era um jardim de espantos", resume o autor, contente. Quando visita a região em 1940, já vai "a uma cidade morta ou a um cemitério de ruínas".

O Estado Novo a sufocara. Ficaram as lembranças.

LAPA/NOTURNO DA LAPA
AUTOR Luís Martins
EDITORA José Olympio
QUANTO R$ 65 (box com os dois livros; 176 págs. ("Lapa") e 288 págs. ("Noturno da Lapa")
AVALIAÇÃO muito bom


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