Folha de S. Paulo


Em carta, Mário de Andrade cita sua 'tão falada' homossexualidade

Um dos maiores mistérios sobre Mário de Andrade, uma carta a Manuel Bandeira até agora vetada a pesquisadores, foi revelado nesta quinta (18), ajudando a esclarecer um aspecto pouco conhecido, mas muito debatido, da vida do escritor paulistano.

Em trecho inédito da carta, datada de 7 de abril de 1928, Mário (1893-1945) trata, como se imaginava, da sua "tão falada (pelos outros) homossexualidade". Com sua elegância habitual, discrição e cautela, admite ao amigo sua orientação sexual.

O conteúdo completo do documento foi liberado na quinta (18) pela Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, por determinação da Controladoria-Geral da República (CGU).

Um dos trechos revelados nesta quinta diz, na sintaxe particular do autor de "Paulicéia Desvairada", o homenageado deste ano na Flip:

"Si agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua [...] e si saio com alguém é porque esse alguém me convida, si toco no assunto, é porque se poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades platônicas, só minhas."

EDIÇÕES

No arquivo da Casa de Rui desde 1978, o documento foi originalmente publicado pelo próprio Bandeira, em 1958, sem alguns parágrafos e sem o aviso de que fora editado.

Assim permaneceu no volume "Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira" (Edsup/IEB), organizado por Marcos Antonio de Moraes em 2000, embora este tenha incluído outros trechos e cartas então inéditos.

O trecho aberto agora vem logo depois da seguinte frase, que já fora publicada: "Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto". A junção dos trechos permite afirmar que Mário assumiu para o amigo sua homossexualidade.

"A famosa carta proibida de Mário de Andrade saiu do armário - e isso não muda nada na imagem dele e na sua obra. Mas finalmente põe fim às murmurações em torno de uma questão que a pudicícia e a repressão só fizeram hipertrofiar", diz o biógrafo Humberto Werneck.

"Ele admitiu sem admitir diretamente. acho que agora todo mundo está satisfeito e vai começar a falar da obra dele", diz Jason Tércio, que finaliza uma biografia sobre o modernista e que diz manter sua tese da bissexualidade, já que Mário também se dizia atraído por mulheres –teve, por exemplo, uma paixão platônica por Tarsila do Amaral.

O tema da sexualidade do modernista foi tratado pela primeira vez por Moacir Werneck de Castro, que conviveu com o autor de "Macunaíma" e abordou a questão no livro "Mário de Andrade - Exílio no Rio" (1989).

Castro partia das análises literárias de João Luiz Lafetá (em "Figuração da Intimidade - Imagens na Poesia de Mário de Andrade) e da correspondência então conhecida do escritor para concluir que "na raiz do drama existencial de Mário de Andrade jaz a angústia da sexualidade reprimida e transformada em difusa pansexualidade".

ÚNICA

Esta era a única das 15 cartas de Mário a Bandeira no acervo da Casa de Rui que permanecia inacessível. As outras foram abertas em 1995, respeitando o prazo, estipulado pelo modernista, de 50 anos de sua morte.

Na carta, Mário lamenta o "ridículo dos socializadores da minha vida particular", o que explica a motivação de Bandeira ao editar o texto –os trechos omitidos estão riscados com caneta vermelha, não se sabe por quem.

Em outro trecho, anterior ao desabafo sobre a sexualidade, um certo "X" era citado em frases como "X não é meu amigo, fique sabendo. Eu é que sou amigo dele."

Sabe-se agora que se tratava de Oswald de Andrade, ou "Osvaldo", que um ano depois seria desafeto de Mário –inclusive fazendo troça de sua sexualidade.

Em resposta a Mário, Bandeira escreve, com um mês de atraso: "Fique tranquilo: a sua carta perigosa chegou".

Os maiores conhecedores do acervo de Mário, como Telê Ancona Lopez, que organizou o arquivo do modernista no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP), sempre desconversaram sobre o tema. Na quinta (18), Telê disse à Folha: "Não posso comentar o que não li".

ACESSO

A decisão de manter a carta reservada na Casa de Rui foi de Plínio Doyle (1906-2000), criador do arquivo literário da instituição.

No mês passado, o engenheiro Carlos Augusto de Andrade Camargo, sobrinho de Mário, disse não ver razão para a carta ser liberada. Nesta quinta, ele não foi localizado.

A carta veio à tona por determinação da Controladoria-Geral da União, atendendo a pedido, via Lei de Acesso à Informação, do jornalista Marcelo Bortoloti, da revista "Época", em fevereiro.

Nas semanas que se seguiram ao pedido, a Casa de Rui negou o pedido e dois recursos, sob o argumento de seguir "o que recomenda a Lei 12.527 de 18/11/2011, quanto ao "respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais".

Quando o caso foi parar na CGU, em março, a instituição passou a usar o argumento de que os direitos autorais das cartas de Mário estão protegidos até janeiro do ano que vem, já que a morte dele completou 70 anos neste ano.

A CGU entendeu, no entanto, que a vigência dos direitos autorais não poderia impedir "a mera consulta dos documentos" por pesquisadores. Determinou em maio a liberação do documento, mas a Casa de Rui ainda tentou mais um recurso, anexando à sua argumentação uma carta do sobrinho de Mário.

No último dia 9 –por coincidência, um dia antes de o Supremo Tribunal Federal liberar as biografias não autorizadas–, a CGU manteve a decisão de liberar a carta.

Ainda assim, a Casa de Rui resistiu até a segunda pela manhã. No meio do dia, a instituição anunciou que liberaria a carta nesta quinta. O caso chegou até o Ministério da Cultura, embora a pasta tenha enviado nota desmentindo a informação de que Juca Ferreira tivesse pessoalmente interferido na decisão.

À Folha, o atual diretor do arquivo da Casa de Rui, Ricardo Calmon, disse que a repentina mudança de posicionamento decorreu do reconhecimento do "prazo original de 50 anos de reserva como o prazo oficial, uma vez que foi definido no momento da doação". Esse prazo original, no entanto, já tinha sido apontado no primeiro recurso feito via Lei de Acesso à Informação, em fevereiro.

VEJA A ÍNTEGRA DO TRECHO INÉDITO

Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto. Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria para nós ambos, para você, ou para mim, comentarmos e eu elucidar você sobre minha tão falada (pelos outros) homossexualidade? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar um muito de exagero que há nessas contínuas conversas sociais não adiantava nada pra você que não é indivíduo de intrigas sociais.

Pra você me defender dos outros, não adiantava nada pra mim, porque em toda a vida tem duas vidas, a social e a particular, na particular isso só me interessa a mim e na social você não conseguia evitar a socialisão absolutamente desprezível de uma verdade inicial.

Quanto a mim pessoalmente, num caso tão decisivo para a minha vida particular como isso é, creio que você está seguro que um indivíduo estudioso e observador como eu, ha-de estar bem inteirado do assunto, ha-de tê-lo bem catalogado e especificado. Ha-de ter tudo normalisado em si, si é que posso me servir de "normalisar" neste caso. Tanto mais Manu, que o ridículo dos socializadores da minha vida particular é enorme. Note as incongruências e contradições em que caem: o caso de "Maria" não é típico? Me dão todos os vícios que por ignorância ou interesse de intriga são por eles considerados ridículos e no entanto assim que fiz de uma realidade penosa a "Maria", não teve nenhum que caçoasse falando que aquilo era idealização para desencaminhar os que me acreditam nem sei o quê, mas todos falaram que era fulana de tal.

Mas si agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua (veja como tenho minha vida mais regulada que máquina de precisão) e se saio com alguém é porque esse alguém me convida. Si toco no assunto, é porque se poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades platônicas, só minhas.

Ah, Manu, disso só eu mesmo posso falar. E me deixe que ao menos para você, com quem apesar das delicadezas da nossa amizade, sou de uma sinceridade absoluta, me deixe afirmar que não tenho nenhum sequestro não. Os sequestros num caso como este, onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis.

Eis aí os pensamentos jogados no papel sem conclusão nem consequência. Faça deles o que quiser.


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