Folha de S. Paulo


Prosa seca de Elena Ferrante supera lacunas sobre própria autora

Na única entrevista que até hoje deu ao vivo –aos seus editores italianos, Sandro e Sandra Ferri, para o nº 212 da revista "The Paris Review"– Elena Ferrante conta que, aos 12, 13 anos, achava que todos os bons livros tinham protagonistas masculinos.

Embora afirme ter se libertado logo da noção, pode-se pensar que seus romances, protagonizados sempre por mulheres que narram sua própria história, venham responder à inquietação juvenil.

"A Amiga Genial", primeiro tomo de sua Série Napolitana, se volta para a infância e a adolescência não de uma, mas de duas mulheres fortes.

Elena Greco, a narradora, decide contar as memórias de sua vida ao lado de Raffaella Cerullo –Lina para todos e, só para ela, há seis décadas, Lila. Resolve fazê-lo com todo detalhe possível, em contraposição ao sumiço total de Lila: enquanto ela apaga seus vestígios, Elena os recupera.

"Vamos ver quem ganha desta vez", escreve Elena nesse prólogo, que introduz a dinâmica de sua relação com Lila, conduzida sobre a admiração e a ambição de sobrepujar a amiga mais destemida (e, depois, mais desejada).

Aqui é justo fazer um parêntese e retornar à autora.

Diante da fama internacional que ganhou com a série, parece ocioso informar que seu nome deve ser pseudônimo, que ela só dá raras entrevistas por e-mail e mediadas por seus representantes e que já se questionou até se ela seria uma só pessoa, ou se seria mulher.

Na conversa com os Ferri, a autora responde a essas questões. De tudo o que diz, porém, o mais relevante é sua convicção de que a lacuna sobre si se preenche ou deveria se preencher pela sua ficção.

De fato, a experiência de Elena e Lila e da extensa gama de personagens que as acompanham é tão rica que garante sua autonomia. E é em grande parte essa trama cheia de acontecimentos o motivo do sucesso da série.

Se a uns pode parecer vetusta sua prosa realista e sem formalismos, cabe notar que a precisão da linguagem como instrumento de poder, em si um tema do romance, se reproduz na escrita de Ferrante, modulada para seguir o amadurecer de Elena e Lila.

Sem fazer propriamente um romance histórico ou sociológico, a autora localiza o cotidiano quase miserável das jovens Greco, filha de um contínuo da prefeitura, e Cerullo, filha do sapateiro, num subúrbio napolitano no pós-Guerra em que a violência é disseminada e naturalizada.

Pais batem em filhos, objetos voam pela janela, há pedradas e facadas a mancheias. E, no entanto, o desafio intelectual, a superação dos objetivos escolares se impõe como o aspecto mais crucial da subsistência das meninas.

A todos Lila é superior: é mais corajosa e vence provas sem mais esforço que o de contrair os olhos como uma ave de rapina. Torna-se objeto de ódio no bairro e ganha de Elena o assombro competitivo que nutrirá os próprios sucessos da narradora.

A Amiga Genial
Elena Ferrante
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Também Ferrante se dedica a resolver o desafio intelectual da menina que foi, fazendo em "A Amiga Genial" ao mesmo tempo uma glosa e uma ruptura do gênero no qual seu livro se enquadra, o do romance de formação.

Na convenção do gênero, se o protagonista é masculino, ao fim do livro sai de casa para estudar. Se ao contrário a trama é protagonizada pela mulher, é o casamento que a tira do lar paterno.

No romance da formação de Elena e Lila, há um pouco dos dois, e resta ao leitor se inquirir sobre qual das duas meninas seria mais merecedora do adjetivo do título.

A resposta a isso vem nominalmente quase ao fim desse primeiro volume. Mas também ela é acessória, senão dúbia –e a dúvida pode ser, ensina Ferrante com seus personagens, entre os quais se inclui, um benefício.

A AMIGA GENIAL
AUTORA Elena Ferrante
TRADUÇÃO Maurício Santana Dias
QUANTO R$ 44,90 (336 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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