Folha de S. Paulo


opinião

Nunca houve Drácula como sir Christopher

As redes sociais acordaram nesta quinta (11) com comentários sobre a "morte de Saruman". É compreensível, mas pouco, muito pouco quando se fala de Christopher Lee –ator britânico morto aos 93 anos.

Se for para estigmatizar, falemos da "morte de Drácula", de resto um personagem muito mais influente na cultura popular que o mago malvado de J.R.R. Tolkien.

Sir Christopher Frank Carandini Lee foi o maior dos vampiros na tela. Um fã purista do cinema de horror apontará o misterioso Max Schreck em "Nosferatu", criado no mesmo 1922 em que Lee nasceu, como o rei dos sanguessugas cinematográficos. Outro lembrará que a figura clássica do Drácula aristocrático e de fraque foi criado por Bela Lugosi em 1931.

Este fã vai de Lee. Os motivos começam numa contradição: ele odiava o fato de o conde ter poucas falas, nenhuma tirada do livro original de Bram Stoker (1897), no clássico de 1958 em que encarnou pela primeira vez o personagem.

A coisa só piorou nas várias sequências, uma pior do que a outra, forçadas por lucrativos contratos. Em "Drácula, o Príncipe das Trevas" (1966), Lee entra mudo e sai calado –a lenda alimentada por ele diz que as falas eram ruins demais, algo que o roteirista naturalmente negou.

Só que a limitação acabou exacerbando uma criação visual única: o conde frio e implacável, esguio e sempre vestido de preto. O silêncio era compensado por uma animalidade sedutora, não acuada como a de Schreck e seu conde Orlock. Exatamente como o conde de Stoker no livro, as mocinhas se desmanchavam pelo vilão antes de terem suas jugulares degustadas.

Desta forma, Lee resgatou o contexto de embate entre a sexualidade e repressão, entre as descobertas da psicanálise e o ocaso da era vitoriana, que marcam o conde literário.

Por fim, olhos vermelhos e sangue falso a rodo, marcas registradas das produções da Hammer Films, completavam a criação de um modelo definitivo para todos os Dráculas dali em diante –de Jack Palance a Gary Oldman, passando por Frank Langella e uma longa linhagem de canastrões.

Os talentos de Lee eram variados, e as novas gerações foram apresentados a ele pela ponta na malfadada "nova trilogia" de "Guerra nas Estrelas" e pelo supracitado Saruman de "O Senhor dos Anéis", além de diversos papéis menores em que apenas sua presença e a profunda voz de baixo-barítono era capaz de dar gravidade ao mais lateral dos personagens.

Sua voz, aliás, lhe serviu numa infinidade de "voice-overs" e óperas, além de também para gravar inacreditáveis discos de heavy metal quando já era octogenário. Nos últimos dois anos, lançou discos com covers metaleiras de músicas natalinas, um espanto pelo bizarro e pelo sucesso comercial: foi o mais velho cantor a entrar no top 100 da Billboard, na posição 22 em 2013.

Lee considerava que sua melhor perfomance ocorreu em 1998, quando viveu o fundador do Paquistão, Muhammad Ali Jinnah, e gostava especialmente de "O Homem de Palha" (1973).

Mas, provavelmente para seu desgosto, o papel que o definiu foi o do velho conde da Transilvânia. Nunca houve Drácula como sir Christopher.


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