Folha de S. Paulo


Elza Soares prepara seu primeiro disco só de inéditas e diz viver o agora

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Elza Soares quer retocar a fênix que tatuou na batata da perna em 2007. "Porque eu sou uma delas, estou sempre renascendo de alguma coisa."

A nova encarnação será em "A Mulher do Fim do Mundo", "um disco totalmente inédito pela primeira vez na minha carreira", conta. São dez músicas que rondam sexo, morte e negritude, compostas para ela por paulistas como José Miguel Wisnik, Romulo Fróes e Celso Sim –que define o trabalho como "punk-samba".

Elza é uma fênix em chamas. O black power, pintado de vermelho, combina com unhas e blusa aveludada rubras. Sua única exigência para fazer entrevistas é a contratação de seu maquiador favorito, Wesley Pachu.

Com rasgos estratégicos em toda a coxa, a calça preta gruda feito segunda pele no corpo torneado da mulher que nunca gostou de revelar a idade –está na casa dos 80 anos.

Marcia Zoet - 9.nov.1988/Folhapress
O 'spacatto' de Elza, em 1988, no hotel Pan Americano
O 'spacatto' de Elza, em 1988, no hotel Pan Americano

Elza é do tempo do "now". "Não faço planos. Já fui ontem, amanhã não sei. 'My name is now' [meu nome é agora]", diz, em seu apartamento, de frente para a praia de Copacabana, no Rio. Com móveis de revistas de decoração, a sala tem uma oração de são Bento na parede: "É mau o que tu me ofereces, bebes tu mesmo o teu veneno".

A cantora mira o vaso com palmas-de-santa-rita brancas já murchas sobre a mesa de vidro preto. Aposta que brotarão de novo. Sua própria vida é feita de voltas por cima.

É a mulher que casou forçada pelo pai aos 12 anos, foi mãe aos 13, viu o segundo bebê, Edmundo, morrer de fome, virou viúva com 21, conheceu o craque e alcoólatra Mané Garrincha (1933-1983), "das pernas tão tortas e tão certas", aos 32 e perdeu o caçula de sete filhos, Garrinchinha, 8, num acidente de carro em 1986.

Em 1999, o tombo literal: de dois metros no extinto Metropolitan. Confusa por um poderoso canhão de luz em sua cara, não viu a marca de segurança no palco. Ganhou R$ 60 mil num processo contra a casa de shows carioca, que à época argumentou: "A ré insiste em não usar óculos, apesar da necessidade".

As sequelas cobraram fatura em 2007, quando fez a primeira de três cirurgias na coluna. Hoje tem 16 pinos "do cóccix ao pescoço", título do disco premonitório de 2002. Agora já não samba nem usa salto 15 cm. O show, contudo, tem de continuar.

"Coluna é coluna, voz é voz." Hoje canta sentada, com os mesmos vestidos justos e transparentes, no projeto "A Voz e a Máquina" (ela e dois DJs) ou em "Elza Canta Lupicínio" –de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), compositor de seu primeiro hit, "Se Acaso Você Chegasse", de 1960.

Elza renasce. Em 2012, separou-se de Bruno, 45 anos mais moço. Seu "now" é se resolver com ela mesma. "Estava no quarto sozinha, escutando Chet Baker, e falei: 'Elza, quer casar comigo?'. A Soares disse: 'Por enquanto não'."

Entre cerca de 15 tatuagens, Elza Soares desenhou rosas nos ombros e nas costas. Uma forma de pedir perdão ao compositor Lupicínio Rodrigues. Ela ainda lembra daquela noite nos anos 1960, no Texas Bar, antiga boate de Copacabana, em que "Lupe" chegou com um buquê.

Não o reconheceu. "E com medo dele, pensando que queria outra coisa, disse: 'Detesto rosas, não me chamo Rosa'". Ele rebateu: "Só queria parabenizá-la pelo sucesso às custas de uma composição minha".

O temor de Elza tinha razão de ser. Até havia galanteios "amigos", como os de Tom Jobim (1927-1994), que a achava "bebível e comível", recorda. Mas havia o "veneno" do qual hoje se blinda com a novena de são Bento. A "espevitadazinha" ouviu "muito comentário maldoso num momento em que a música não tinha negras fazendo sucesso".

"Já me deixaram excluída na porta de um hotel dizendo que estavam lotados. Uns falavam que eu era prostituta, que não sabiam da minha procedência", lembra. "Mas chutei e fiz um gol como Garrincha, passei por cima disso."

Stephane Munnier/Divulgação
A cantora Elza Soares
A cantora Elza Soares

O assédio já acontecia na meninice. Elza, filha de lavadeira e operário, cantava imitando o "zzzzzz" do louva-a-deus, com uma lata de água na cabeça, numa favela da periferia carioca. Certo dia, levava o café ao pai, que trabalhava numa pedreira, quando se embrenhou no mato atrás de um desses insetos. Alaúrdes Soares, 22, a seguiu. O pai flagrou a cena e intimou o jovem operário a casar com a filha.

Do primeiro marido, morto nove anos depois, herdou o sobrenome. E foi a sra. Soares que tentou a sorte num programa de calouros de Ary Barroso (1903-1964). Moleca franzina, de "30 e poucos quilos", pegou uma saia azul da mãe, "que devia pesar o dobro", improvisou um ajuste com alfinetes e fez duas marias-chiquinhas para o grande dia.

A plateia morreu de rir, e o autor de "Aquarela do Brasil" perguntou de que planeta ela vinha. "Do mesmo que o seu, seu Ary. O planeta fome", devolveu. E arrebatou a todos cantando "Lama" ("Se eu quiser fumar, eu fumo/ Se eu quiser beber, eu bebo/ Não me interessa mais ninguém/ Se o meu passado foi lama"), de Aylce Chaves e Paulo Marques.

Garrincha, que conheceu quando foi madrinha da seleção em 1962 e com quem passou 17 anos, foi seu grande amor. Só não deixa saudades "porque não gosto dessa palavra", diz, censurando uma lágrima com a palma da mão.

"A gente sente falta de um craque. Cadê o cara [no futebol]?", afirma no mesmo dia em que estoura o escândalo da Fifa. Elza, que levanta a bandeira "da mulher, dos gays e da negritude", diz também sentir falta "de um bom samba". "As rádios não tocam. Na tevê, tem sempre uma música americana. De repente a Beyoncé é mais brasileira do que todos nós. Quem sabe?"

"Em vez de sambar com ele, sambaram em cima dele. Mas ele está só cochilando", diz a mulher que, se preciso for, vai buscá-lo no fim do mundo.


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