Folha de S. Paulo


Escritor Javier Cercas lança livro sobre homem que fingiu ser vítima de guerras

Por quase três décadas, o sindicalista catalão Enric Marco Batlle, hoje com 94 anos, comoveu a Europa com sua história. Segundo contava, havia lutado ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola (1936-39) e sobrevivido num campo de concentração nazista na 2ª Guerra (1939-45).

Seu relato o fez um símbolo de heroísmo para vítimas, familiares e novas gerações. Marco foi convidado a dar palestras, entrevistas e depoimentos para livros. Recebeu medalhas e foi homenageado por líderes de todo o mundo.

Até que, em 2005, o historiador Benito Bermejo farejou contradições em seus depoimentos e foi apurar. Descobriu que era tudo mentira.

Envergonhado, Marco admitiu que jamais havia passado sequer um dia num campo de concentração e renunciou à presidência da Amical de Mauthausen, associação que reúne os sobreviventes do grupo de 9.000 espanhóis feitos prisioneiros pelo nazismo.

"Enric Marco é o Pelé da impostura", resume Javier Cercas, 53, em entrevista à Folha, em Buenos Aires, onde participou da feira do livro local. Cercas virá apresentar "O Impostor", seu livro sobre Enric Marco (que será lançado pela Biblioteca Azul), na próxima Fliporto, em Pernambuco, em novembro. Leia abaixo os principais trechos.

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Folha - Por que se interessou por Enric Marco?
Javier Cercas - Porque é um espelho monstruoso do que somos todos nós. Intrigou-me como era possível uma pessoa mentir sobre o Holocausto, o mais monstruoso crime da humanidade. E, depois, que todos acreditassem! Fiquei obcecado com o personagem, mas foi Mario Vargas Llosa quem me aconselhou a seguir adiante.

Por que crê que Marco mentiu?
Marco inventou um passado heroico porque queria que todos o admirassem, que o quisessem. Mas, de certa forma, não é o que fazemos todos? Damos uma adornada, uma melhorada no nosso passado para fazer com que nos vejam mais interessantes.

Na Espanha, depois da ditadura franquista (1939-75), todos se declararam antifranquistas, mas não é verdade. Alguns haviam resistido ao sistema, sim, mas a maioria dos espanhóis foi cúmplice, senão não teria durado tanto. Ou seja, muitos passaram a inventar uma ficção sobre seu passado. A diferença é que Marco levou isso ao extremo.

Em "Soldados de Salamina", você investiga um republicano que decide não matar um falangista. Em "Anatomia de um Instante", a razão de um parlamentar peitar tentativa de golpe de Estado, em 1981. Decisões inusitadas são seu tema?
Sim, são situações que oferecem reflexão sobre nossas atitudes que não parecem ter sentido. Marco é uma hipérbole monstruosa da impostura. Um homem que decidiu que não queria ser lembrado por ter vivido uma vida ordinária e que, como Alonso Quijano, o Dom Quixote, um dia decidiu que teria a vida que sonhou.

Houve críticas por você ter dado voz a um impostor, como se assim o justificasse.
Acho um erro a ideia de que não devemos buscar entender a razão dos vilões. Necessitamos entender o Mal. Se não entendemos o Mal, não podemos combatê-lo. Imagine se alguém tivesse entrado na cabeça de Hitler e o explicado. E mais, entendido como esse psicopata pôde fascinar um país tão culto. Não basta dizer que Hitler foi um monstro. Gritar que há uma bomba não a desarma, é preciso ir até ela e desativa-la. Por isso acho que temos de ir até os homens que realizaram maldades e compreendê-los.

Chema Moya - 13.nov.2014/Efe
GRA162 MADRID 13/11/2014 El escritor Javier Cercas durante la entrevista concedida a EFE sobre su nueva novela
O escritor Javier Cercas durante a entrevista concedida à EFE sobre seu livro "El impostor"

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