Folha de S. Paulo


Artista Rafael Suriani grafita drag queens brasileiras em muros de Paris

Paris é uma drag. Há duas semanas, fachadas da capital francesa amanhecem com pinturas de até três metros de drag queens brasileiras. O artista Rafael Suriani, 34, está por trás dos lambe-lambes pintados com tinta acrílica.

Tudo começou porque, às vezes, ele acha Paris "uma droga". Há oito anos morando na cidade, o paulistano diz que se assustou com "a marcha a ré que a França deu" em 2013.

Na época, multidões tomaram a avenida Champs-Élysées para protestar contra um projeto de lei que autoriza o casamento e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Cem policiais tiveram de escoltar o primeiro matrimônio entre homens no país, ao som de "Love", de Nat King Cole.

"Achei que era o momento de expressar meu ponto de vista", diz o artista. Produziu então grafites gigantes de drags famosas –com traços que remetem à pop art de Roy Lichtenstein (1923-1997)–, que ele prefere colar aos domingos, "dia mais calmo e com comércio fechado", por bairros clássicos como Belleville e Marais.

Suriani voltou a São Paulo para expor o retrato de suas musas inspiradoras no mês passado, com a mostra "It's Not Personal, It's Drag", na Tag Gallery, no centro da cidade.

Lá estavam Divine (1945-1988), estrela de filmes como "Pink Flamingos" (1972) e "Mondo Trasho" (1969), de John Waters, e Raven, a participante do reality show "RuPaul's Drag Race".

O artista retornou a Paris no fim de abril e começou a nova etapa de sua obra: levar a imagem das brasileiras para Paris.

LARGADA

No Blue Space, famosa boate LGBT paulistana, conheceu algumas das personalidades que o fascinaram num momento decisivo de sua vida.

Aos 18 anos, começou a frequentar a cena clubber. "Vi as primeiras drag queens nas ruas e nos clubes. Entre elas a Marcelona, o Vitor Piercing..."

Achou todas bem diferentes, mas igualmente impressionantes "pela liberdade que assumiam ao sair montadas, cheios de glamour e mistério".

"Para os olhos de um adolescente recém-saído do armário, pareciam seres mágicos ou mitológicos", rememora.

Incluiu esses e outros personagens icônicos da noite paulistana na "lista parisiense". Estarão lá, por exemplo, Tchaka, garota-propaganda de uma marca de perucas sintéticas e nomeada a Nossa Senhora Protetora das Festas num "translendário" (calendário com as drags) de 2014.

Quando se montou pela primeira vez, o ator Valder Bastos, 45, ficou "tão estranha" que os amigos o apelidaram de Tchaka –"como o macaquinho muito feio" da série de TV "O Elo Perdido" (1974-76).

Hoje, acompanhada por go-go boys e anões, a drag da peruca loira que poderia ter saído do acervo da rainha Maria Antonieta não sabe se terá dinheiro para se ver nos muros parisienses. Só conhece a cidade por turnês virtuais que faz em seus museus.

Suriani até tentou se montar um dia. "Foi uma catástrofe", assume. Contentou-se em retratar as drags profissionais. E as brasileiras, diz, diferenciam-se por "realizar coisas interessantes com poucos recursos", o que gera "espontaneidade e energia festiva, ligada à tradição do Carnaval".

TELA EM BRANCO

Íkaro Kadoshi, careca de traços andróginos e cílios gigantes, define-se como uma "tela em branco". "Posso ser o que quiser: masculino, feminino, ambíguo, assexuado." Integrar-se a Paris, diz, será "arte ao quadrado" –ele somado à obra de Suriani.

O artista já colou imagens de Íkaro em São Paulo, na rua Augusta. "Elas foram rasgadas pelo público, o que é normal. A 'street art' ainda é olhada com preconceito pela classe conservadora por ser transgressora, inovadora, não precisar de locais como museus."

André da Silva, "que fez 21 anos há algum tempo", compõe a drag Malonna com referências que vão de Cher a Dercy Gonçalves (1907-2008). Após sair do armário, chegou a hora de sair da noite, diz. "Suriani acredita que nós devemos ocupar o espaço público e não ficarmos restritas a clubes noturnos, sobretudo na era da direita fascistoide."


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