Folha de S. Paulo


Ex-retirante, brasileiro espalha literatura do país nos EUA

Domício Coutinho ia ser padre, mas lhe aconteceram as mulheres.

Pensou depois tornar-se escritor, mas começou a ganhar dinheiro, muito dinheiro.

Filho de mãe solteira no Nordeste dos anos 1930, o jovem Coutinho nunca se imaginou a viver em Nova York e a fundar a Brazilian Endowment for the Arts (BEA), instituição que divulga a cultura brasileira na principal cidade norte-americana. Mas foi justamente o que aconteceu.

Ivan Dominguez/Divulgação
O paraibano Domício Coutinho, que após infância pobre fez fortuna nos Estados Unidos e fundou centro cultural em NY
O paraibano Domício Coutinho, que após infância pobre fez fortuna nos Estados Unidos e fundou centro cultural em NY

"O Brasil está na boca do mundo. A comida, o Carnaval, a música, as meninas, tudo é celebrado, mas a nossa literatura infelizmente não é", explica o brasileiro no meio dos 6.000 volumes da Biblioteca Machado de Assis, uma das raras bibliotecas de literatura brasileira nos EUA abertas ao público, sediada na instituição, em Manhattan.

Com cerca de 35 escritores associados e centenas de eventos realizados nos últimos dez anos, a BEA ainda atraí uma grande maioria de visitantes brasileiros.

Coutinho sabe que o seu trabalho não está terminado -e que, aos 83 anos, poderá não viver para testemunhar o reconhecimento que sonha para a literatura do Brasil.

"A minha família, os meus filhos, têm instruções para continuar este trabalho", diz. explica. "Vou deixar dinheiro que garante o funcionamento da BEA por vários anos."

Ele nasceu três meses depois do pai ter morrido. Com sete filhos para criar, a mãe deixou a pequena cidade de Caaporã, na região metropolitana de João Pessoa (PB), e foi para Pernambuco.

Nesses anos, um menino como ele tinha três caminhos para escapar à pobreza: juntar-se a uma banda de sucesso, ser jogador de futebol ou tornar-se padre. Coutinho escolheu a terceira opção e foi para a seminário com 12 anos.

Foi lá que cresceu, tendo ido para Roma com 22 anos para estudar na Pontifícia Universidade Gregoriana. Acabou por desistir antes de ser ordenado. "Senti que, por vários motivos, não era vida para mim", explica.

Foi viajar com um amigo pela Europa. Na Áustria, conheceu uma bela loura de 16 anos. "A gente se namorou, assim, muito diplomaticamente", diz Coutinho. "Prometi-lhe que ia acabar os estudos no Brasil, e voltava."

Durante três anos trocaram cartas de amor. Coutinho recebia correspondência com madeixas de cabelo louro e flores dos Alpes, a Edelweiss, símbolo de amor eterno. "Era bem romântica, a menina, endoidava qualquer um", lembra.

Quando regressou à Áustria, o romance estava terminado. Voltou para Nova York e não saiu mais.

Casou-se com uma brasileira e teve dois filhos. Depois de alguns anos de aluguel, decidiu comprar um edifício de três apartamentos no Queens por US$ 14 mil.

Vivia em um e alugava os outros dois. Três anos depois, vendeu a casa por US$ 55 mil. Comprou outra, que tornou a vender. Depois uma terceira, e outra, e outra. Fez fortuna.

As casas dele rapidamente se tornaram pontos de encontro para os intelectuais da diáspora brasileira. O grupo cresceu e, anos depois, começou a reunir-se no consulado brasileiro em Nova York.

No início dos anos 2000, o espaço estava muitas vezes indisponível e começava a ser pequeno para os milhares de volumes que se acumulavam.

Perto dos 70 anos, Coutinho já não alimentava a ilusão da infância de que seria um escritor de sucesso -planejou lançar suas memórias, "Aventuras de um Pau-de-Arara", que terminou como um livro de poemas. Publicou também um romance.

Apesar de viver de forma simples, tinha acumulado fortuna e acabara de comprar um edifício no número 240 da rua 52, em Manhattan, que tinha o térreo vazio. Transformou o espaço em centro cultural.

Assim nasceu o BEA, em fevereiro de 2004. Na última década, a instituição organizou centenas de eventos: conferências, mostras de cinema, aulas de português e, nas últimas quartas do mês, uma noite literária.

Apesar desses esforços, a esmagadora maioria dos norte-americanos continua a desconhecer livros Machado de Assis ou Guimarães Rosa.

Kenneth David Jackson, professor de português e literatura na Universidade de Yale, diz admirar a luta de Coutinho, mas critica o Brasil por não ter uma representação oficial na cidade. "É anacrônico ver este esforço quixotesco, por um indivíduo sozinho, numa das capitais culturais do mundo", afirma.

Jackson diz que a missão do brasileiro é muito difícil. "A literatura brasileira não tem um presença significativa nos EUA porque fica perdida na ideia de 'literatura latino-americana', que se entende ser em espanhol."

Coutinho concorda, mas diz que conhece a solução. "Nenhuma literatura é feita sem a ajuda de um grande agente literário. Isso tem faltado o tempo todo."

PAIXÃO NACIONAL

Até esse dia chegar, outros aspectos da cultura brasileira vão prevalecer. Coutinho lembra-se do dia em que um realizador entrou na BEA dizendo que ia filmar o Carnaval brasileiro.

Coutinho perguntou-lhe qual seria o seu ângulo. "A bunda brasileira", respondeu-lhe o norte-americano, em português. Coutinho sentiu-se insultado, depois intrigado. O realizador esclareceu que a ideia partira de um ensaio do sociólogo Gilberto Freyre.

Coutinho desconhecia a existência do texto e ligou para o neto de Freyre. Dias depois, tinha no correio uma copia de "Bunda - Paixão Nacional". Coutinho achou a ideia menos absurda, mas ainda assim inaceitável.

"O Brasil é muito mais do que bunda", diz.


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