Folha de S. Paulo


Vencedor do Pulitzer, Anthony Doerr duvidava do sucesso de livro premiado

Anthony Doerr pode pensar em muitas razões para que seu romance ""Toda Luz Que Não Podemos Ver", anunciado na segunda-feira (21) o vencedor do Prêmio Pulitzer de ficção, não alcançasse um público grande.

O livro é ambientado na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, e um de seus personagens é um jovem nazista simpático. A prosa muitas vezes parece barroca e não flui facilmente. Há trechos densos sobre tecnologia de rádio e ligações de carbono.

Mas ele não consegue explicar como o livro tornou-se um sucesso comercial enorme. "Nunca passou por minha cabeça que este seria um livro que faria sucesso", disse Doerr. "Acho que é perigoso ficar me perguntando o porquê disso."

Em um ano repleto de romances atraentes de pesos pesados literários como David Mitchell e Marilynne Robinson, o livro de Doerr emergiu como inesperado best-seller de ficção de 2014. A história, sobre uma garota francesa cega que entra para a resistência contra a ocupação alemã e um jovem soldado alemão inteligente com talento excepcional para rastrear sinais de rádio, encontrou eco entre os leitores e pegou de surpresa o mercado editorial.

Incluindo Doerr e seu editor. A Scribner, que imprimiu 60 mil cópias quando o livro primeiro foi publicado, em maio de 2014, fez 25 outras tiragens e já imprimiu 920 mil exemplares até dezembro.

"Não apenas o livro continuou a ser vendido, quanto as vendas foram crescendo, e isso é muito incomum", comentou Carolyn Reidy, executiva-chefe da Simon & Schuster, a empresa mãe da Scribner. "Muitos títulos saem das listas de mais vendidos depois de quatro meses. Quando um livro dura mais que quatro meses nas listas, é um milagre."

Ed Chaucer, comprador da livraria Chaucer's, em Santa Barbara, Califórnia, contou que quando pediu mais de cem exemplares, teve medo de ter exagerado na dose. Os livros se esgotaram e ele teve que fazer novo pedido uma semana depois.

"Toda Luz Que Não Podemos Ver" vendeu bem ao longo de todo o ano passado, mas as vendas triplicaram na semana após o anúncio dos vencedores do National Book Award, em 19 de novembro, apesar de Doerr ter perdido o prêmio para a coletânea de contos "Redeployment", de Phil Klay.

Na cerimônia, Nan Graham, a vice-presidente sênior e publisher da Scribner, assegurou a Doerr que o fato de não ter ganho o prêmio seria um incentivo adicional às vendas. Até a publicação deste texto, o título era o terceiro livro mais vendido na loja virtual da Amazon americana.

"Falei a ele que as livrarias vão promover seu livro como aquele que deveria ter ganho o National Book Award", ela disse. "Ele vendeu mais por ter perdido."

Vários fatores parecem estar por trás do fenômeno. A Scribner promoveu uma campanha em estilo antigo voltada às livrarias independentes, começando meses antes de o livro ser lançado. Em janeiro, a Scribner promoveu um encontro de Doerr com donos de livrarias no Winter Institute, um encontro anual de livreiros independentes. O romance suscitou entusiasmo tão amplo que o vice-presidente de vendas e marketing da Simon & Schuster disse a Graham que "ninguém que leu o livro deixou de adorá-lo".

"Toda Luz" saiu em maio de 2014 e ganhou a adesão ampla da crítica. O livro chegou às listas dos mais vendidos algumas semanas depois e permanece nelas há 33 semanas. As vendas subiram ainda mais recentemente, quando o romance figurou em cerca de 20 listas de "melhores livros do ano" feitas por críticos literários, incluindo na lista do "New York Times Book Review".

LEGO

Quem mais se surpreendeu com o sucesso talvez tenha sido o próprio Doerr, que vive em Boise, Idaho, com sua mulher, Shauna Eastman, e seus gêmeos de 10 anos. "Este livro tem equações trigonométricas nele -é realmente denso", ele comentou. "Eu imaginei realmente que o tipo de leitor para o qual eu o escrevi ia gostar, mas não pensei que fosse agradar também a tia Judy."

Não é como se Doerr, 41 anos, fosse um desconhecido. Seus quatro livros anteriores tiveram recepção crítica em boa medida positiva; ele já ganhou 20 honrarias e prêmios literários.

Anthony Doerr começou a escrever aos 8 anos. Quando era criança e adolescente em Cleveland, brincava com a máquina de escrever de sua mãe, escrevendo histórias sobre seus brincadeiras de Lego e Playmobil. Ele estudou história no Bowdoin College e fez trabalhos avulsos para se sustentar enquanto escrevia, foi cozinheiro no Colorado e chegou a trabalhar em uma fazenda de ovelhas na Nova Zelândia.

Ele fez mestrado em ficção na universidade Bowling Green State, em Ohio, onde escreveu alguns dos textos que apareceriam em seu primeiro livro de contos, "The Shell Collector" (2002), que a Scribner comprou por US$ 15 mil.

Apesar de ter ganhado uma base de leitores fiéis, Doerr teve dificuldade em sustentar-se escrevendo ficção. Durante os dez anos que passou pesquisando e escrevendo "Toda Luz Que Não Podemos Ver", ele se sustentou ensinando redação na universidade Boise State e escrevendo para revistas de turismo e ciências.

Enquanto estava escrevendo "Toda Luz", ele também publicou duas outras obras pela Scribner - um livro de memórias sobre sua vida em Roma e outra coletânea de contos. Os dois juntos venderam cerca de 70 mil exemplares.

"Tony vive com dificuldade há 12 anos", comentou Graham. "Ele viajava sozinho de carro por dez horas para ensinar alguma oficina no fim de semana por US$ 2.500."

Os fios narrativos de "Toda Luz Que Não Podemos Ver" levaram anos para ser reunidos. Doerr começou com uma única cena: um menino preso ouve uma menina lhe contar uma história pelo rádio. Com o tempo, ele desenvolveu os dois personagens principais -o órfão alemão Werner, que se envolve no movimento nazista, e Marie-Laure, uma menina francesa cega que foge de Paris com seu pai, chaveiro de um museu que esconde um diamante dos saqueadores nazistas.

Doerr estudou diários e cartas escritos durante a guerra e viajou à Alemanha, a Paris e a Saint-Malo, a cidade portuária na região da Bretanha onde boa parte da história é ambientada.

A história se desenrola em capítulos curtos que se alternam entre as perspectivas dos dois personagens jovens. Não foi fácil entremear as narrativas paralelas, mas isso injetou suspense na história.

"Houve momentos em que me perguntei 'por que não me contento em contar apenas uma de suas histórias?'", contou Doerr. Ele disse que se sentiu livre para experimentar porque previa ter um público limitado de leitores de ficção literária. Talvez seja mais difícil ceder a esses impulsos quando ele redigir seu próximo romance, sob o peso das expectativas que acompanham o fato de ter se tornado um autor de grandes vendas.

No momento, ele estuda três ideias diferentes. Uma história teria lugar durante o cerco de Constantinopla em 1453. Outra gira em torno da construção do Canal do Panamá. Uma terceira é ambientada numa nave espacial que viaja a um planeta tão distante que a humanidade só pode alcançá-lo numa viagem que dura várias gerações.

Ele explica: "Você tenta regar essas ideias, como se fossem plantas, para ver qual delas vai receber mais luz e florir".

Tradução de CLARA ALLAIN

TODA LUZ QUE NÃO PODEMOS VER
AUTOR Anthony Doerr
TRADUÇÃO Maria Carmelita Dias
EDITORA Intrínseca
QUANTO R$ 39,90, 528 págs.


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