Folha de S. Paulo


'Noite Estrelada' e outros Van Gogh capturaram a matemática cósmica

O aniversário do grande pintor holandês Vincent van Gogh, nascido em 1853, aconteceu há 20 dias. Excelente oportunidade, portanto, para revisitar estudos relacionando à turbulência que vemos em alguns de seus quadros, entre eles "Noite Estrelada" (1889), no qual luz e nuvens fluem em espirais que parecem se mover na tela, com a turbulência que ocorre na natureza, em particular em fluidos e certos gases.

A conexão tem uma história interessante, sendo inspirada por uma imagem de uma estrela tirada pelo telescópio espacial Hubble em 2004, em que vemos rodamoinhos causados por poeira e gás em movimento turbulento.

O físico José Luis Aragón, da Universidade Autônoma do México, e colaboradores na Espanha e na Inglaterra, buscaram por uma relação matemática entre a turbulência dos fenômenos naturais e as criações de Van Gogh, que pintou "Noite Estrelada" e outros quadros durante períodos de prolongados distúrbios mentais.

Divulgação e Nasa e Hubble Heritage Team/Divulgação
À esq., 'Noite Estrelada', de Van Gogh; acima, imagem feita pelo telescópio Hubble em 2004 mostra redemoinhos de poeira e gás
À esq., 'Noite Estrelada', de Van Gogh; acima, imagem feita pelo telescópio Hubble em 2004 mostra redemoinhos de poeira e gás

O físicos descobriram que a mesma relação matemática descreve a turbulência vista na arte de Van Gogh e na natureza. Para tal, exploraram uma propriedade conhecida como luminância (do inglês "luminance"), que mede a intensidade do brilho em pontos diferentes de uma superfície, como a tela de um quadro.

O olho é mais sensível à luminância do que a diferenças entre cores, o que explica o efeito que vemos em muitas telas dos impressionistas, em que as cores parecem brilhar com uma intensidade quase que mágica.

Usando imagens digitalizadas dos quadros, os físicos calcularam a probabilidade relativa de que dois pontos (pixels) na tela, separados por uma distância R, tivessem a mesma luminância.

Com isso, mostraram que Van Gogh (intuitivamente?) construiu imagens que obedecem a uma lei de escalas em que o mesmo padrão de brilho é repetido em distâncias diferentes.

Essa lei de escalas ocorre também na turbulência dos fluidos, nos quais rodamoinhos maiores doam energia para rodamoinhos menores, de modo que o mesmo padrão (os rodamoinhos) reaparece em escalas diversas, criando o fenômeno da turbulência.

Durante seus períodos de maior sofrimento, Van Gogh capturou a essência da turbulência na natureza. Sua obra ilustra um arquétipo universal, em que o luminoso transcende a tela e o pincel do artista vira expressão do poder criador do cosmo.

MARCELO GLEISER, 55, é professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA. Seu livro mais recente é "A Ilha do Conhecimento" (Record)


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