Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Último de uma estirpe, Grass foi uma espécie de consciência alemã

Certa vez, num enterro na Alemanha, vi o pastor criticando a vida de um grande professor que acabava de falecer pela falta de dedicação deste à família. Os alemães são críticos até no cemitério, eu sou brasileiro.

Günter Grass, que morreu nesta segunda-feira (13) aos 87 anos, foi um grande escritor, o último de uma estirpe, uma espécie de consciência da nação, que já não era mais ouvida como gostaria, mas continuava berrando ainda assim.

Na Alemanha, será difícil preencher seu lugar. No Brasil, esse lugar está vago há décadas, o que depõe acerca da importância que a literatura consegue alcançar no devir político de ambas as nações.

Sven Hoppe/Efe
O escritor alemão Günter Grass, autor de obras como 'O Tambor', que morreu nesta segunda-feira em Lübeck, na Alemanha, aos 87 anos
O escritor alemão Günter Grass, autor de obras como 'O Tambor', que morreu nesta segunda-feira em Lübeck, na Alemanha, aos 87 anos

"O Tambor" (1959), princípio e centro da obra de Grass, é um dos grandes romances do século 20. Não é por acaso, aliás, que as lembranças do autor, ao revelar que serviu à SS na autobiografia "Nas Peles da Cebola" (2006) terminem justamente no ano em que "O Tambor" foi publicado, embora ele mesmo jamais tenha escolhido um de seus romances como o preferido e nem simpatizasse com essa escolha por parte de outros.

E o mesmo autor que levantou tanta poeira antiga com sua confissão (Grass sempre disse que foi apenas soldado antiaéreo antes de ser preso pelos americanos em 1945), causaria novo escândalo em 2012 com o poema "O Que Precisa Ser Dito".

A crítica a Israel, por colocar a precária paz mundial em risco com suas armas nucleares e supostamente planejar um ataque preventivo que aniquilaria o povo iraniano, chamuscava também a Alemanha por enviar submarinos a Israel. E não foi perdoada, apesar de sua contínua atualidade; ou devido a ela. Grass tinha esse direito, com seu passado?

Embora jamais tenha voltado a brilhar com a intensidade de "O Tambor", em uma obra recente e às vezes retórica como "Nas Peles da Cebola" ainda há passagens sublimes.

Numa delas, um cozinheiro bessarábio dá aulas de culinária aos prisioneiros de guerra e destrinçaa porcos inteiros para depois fazer deles os pratos mais complexos. E isso sem talheres, sem nada, nem sequer animal à mão, apenas com o ar e seus gestos. Tudo para enganar a fome.

Impossível esquecer também seu romance "Um Vasto Campo" (1995), que processa de modo crítico a reunificação alemã. Ao ser publicado, o crítico Marcel Reich-Ranicki, falecido em 2013, apareceu na capa da revista "Spiegel" rasgando o livro e dizendo por "a" mais "b" porque o achava ruim. Não era a primeira vez que o choque entre os dois lançava faíscas.

Grass foi também pintor, escultor e gráfico. Sua imagem de velho casmurro, usando paletós de veludo em subtons de marrom e abóbora, eternamente com o cachimbo na boca, fará parte do imaginário dos alemães para sempre. Eu, que o conheci pessoalmente, sei que sua combatividade encarniçada também era capaz de demonstrar afeto; mas com verve.

MARCELO BACKES é escritor e tradutor, autor do romance "A Casa Cai" (Companhia das Letras)


Endereço da página:

Links no texto: