Folha de S. Paulo


A arte tem obrigação de provocar o islã, diz autor de desenho de Maomé

Para o artista plástico sueco Lars Vilks, autor de uma das maiores controvérsias recentes no mundo da arte, a provocação está em falta.

Ele diz já ter feito sua parte. Vilks, 68, é autor do desenho de 2007 em que o profeta do islã, Maomé, aparece retratado no corpo de um cachorro.

Antes dessa obra, Vilks não era conhecido fora da Suécia. No país, era relacionado a duas gigantes esculturas de madeira em forma de torre que erguera numa reserva ambiental em 1980. A crítica ignorava sua obra.

Bjorn Lindgren/AFP
Lars Vilks em sua antiga casa, no sul da Suécia, em foto de 2012
Lars Vilks em sua antiga casa, no sul da Suécia, em foto de 2012

O desenho fez seu nome ficar conhecido –e ele acabou na lista de procurados da Al Qaeda. Desde 2007, Vilks recebeu ameaças de morte, foi agredido durante uma palestra em 2010 e foi o provável alvo do ataque que aconteceu mês passado em um café em Copenhague, na Dinamarca, onde participava de um debate sobre liberdade de expressão. Duas pessoas morreram.

O tiroteio ocorreu um mês após o atentado em Paris ao semanário "Charlie Hebdo".

Escondido e sob proteção policial, ele falou à Folha, por telefone –não pode receber jornalistas para não revelar onde está–, sobre detalhes do ataque, a crescente islamofobia na Europa e seus motivos para fazer uma obra controversa envolvendo Maomé.

Antes da entrevista, o artista agradeceu "a companhia numa noite solitária".

Folha - O sr. foi o alvo do ataque em Copenhague?

Lars Vilks - Acho provável. Estou na lista da Al Qaeda. Sou um alvo natural.

O que aconteceu naquele dia?

Fomos pegos de surpresa. Uma palestrante do [grupo feminista] Femen estava falando quando ouvimos "bang, bang", repetidamente. Meu guarda-costas me protegeu e me empurrou para o chão. Fui levado para a parte de trás do café. Tudo começou e terminou rapidamente.

Onde o sr. está agora?

Escondido em algum lugar da Suécia. Minhas cortinas estão fechadas, não posso olhar pela janela para não ser visto. Depois do ataque, a polícia me tirou de casa [em Hoeganaes, no sul da Suécia]. Agora tenho um aparato de segurança para me proteger. Tive que me adaptar –tenho um estúdio, que é só uma mesa, onde pinto e desenho. Não tenho filhos, vivo só. Saio de vez em quando, acompanhado. Hoje caminhei 6 km ao ar livre e fui ao mercado. Amanhã não sairei.

O sr. se arrepende de ter feito o desenho em que retrata Maomé como um cachorro?

Um artista trabalha com provocação. Não fiz nada de errado. O que eu fiz faz parte de uma discussão importante. Não me arrependo.

Para que fazer esse desenho?

Não fiz isso para o público em geral, fiz como uma crítica ao mundo da arte. Na Suécia, enquanto esteve só numa galeria, todos entenderam. Mas, quando saiu na imprensa –alguns jornais suecos publicaram o desenho–, vários muçulmanos ficaram bravos.

O sr. preferiria que o desenho não tivesse sido publicado?

Não. Não podemos nos rebaixar ao nível de quem se recusa a entender o contexto. Mas o sr. quis provocar o mundo da arte ou o islã?

Ambos. O problema do islã é a mistura de política com religião. Eles não deveriam receber tratamento especial, serem vistos como um tabu. A arte tem a obrigação de provocar o islã.

Faltam artistas provocativos?

Sim. Na Bienal de São Paulo de 2010, por exemplo, houve reclamações contra uma obra que envolvia urubus ["Bandeira Branca", do artista Nuno Ramos]. Proibiram os animais na obra. Se alguém faz algo diferente, essa pessoa é censurada. Não há provocação, todos são bem-vindos, e o público tem de estar satisfeito, feliz. O elemento provocativo sumiu.

E as outras religiões?

Elas não são tão ligadas à política como o islã. A religião deve ser um negócio privado, mas o islã não é.

A Igreja Católica não é ligada à política?

É. Mas ela não diz: "Faça como mandarmos, senão te matamos". De todo modo, você pode criticar a Igreja Católica, a política americana, Israel. Mas essas não são provocações, porque são críticas esperadas, politicamente corretas. Estão no espectro dos temas tratados pela arte. Um espectro que é, tradicionalmente, esquerdista.

O que foge desse espectro, além do islã?

Criticar a imigração, os negros... Isso é ir contra o politicamente correto.

Há limites para essas provocações? O "Charlie Hebdo" ultrapassou limites do humor?

Não. Se começarmos a negociar com a violência, perdemos a ideia básica da democracia. O "Charlie Hebdo" atacava também o partido direitista na França. Não se pode dizer que o islã era o alvo preferencial.

Os fatos recentes estimulam a islamofobia na Europa?

A islamofobia tornou-se real porque há motivos verdadeiros para ficar com medo. As pessoas atiram em outras. Não dá para não ter medo.

Que tipo de trabalho faz agora?

Desde 2010 faço releituras de obras-primas, sempre com o cachorro com a cabeça de Maomé em algum canto.

Não está explorando essa imagem em benefício próprio?

O cachorro virou minha marca. Não tenho como me desvencilhar dela.


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