Folha de S. Paulo


Autor de 'Sherlock Holmes' foi enganado pela polícia em investigação

Sherlock Holmes não teria tolerado o que aconteceu: documentos descobertos recentemente mostram que a polícia da região de Staffordshire, na Inglaterra, forjou evidências para tentar desacreditar a investigação feita por Arthur Conan Doyle sobre o caso curioso de George Edalji, advogado de Birmingham acusado de mutilar cavalos e enviar cartas anônimas caluniosas, na virada do século 20.

Num relatório impresso encontrado numa coleção de cartas, o chefe da polícia de Staffordshire na época em que os fatos aconteceram, G.A. Anson, reconheceu ter tentado desacreditar Conan Doyle, criando um estratagema complexo.

Anson forjou uma carta ao escritor, assinada como "um informante, Londres", e estimulou outros informantes a fazer revelações para que Conan Doyle fosse induzido a acreditar que a carta anônima tivesse sido enviada por um certo Royden Sharp. Este último era identificado pelo criador de Sherlock Holmes como o responsável pelos "ultrajes de Great Wyrley" (como o caso de Edalji, que ocorreu no vilarejo de Great Wyrley, foi apelidado).

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Cartas de Arthur Conan Doyle que comprovam que o autor foi vítima de conspiração policial
Cartas de Arthur Conan Doyle que comprovam que o autor foi vítima de conspiração policial

"Esta carta é fartamente conhecida pelos autores que já escreveram sobre o assunto, e este documento prova que a carta foi enviada a Conan Doyle pelo chefe de polícia Anson para tentar desacreditar o escritor", disse Sarah Lindberg, da casa de leilões Bonhams, que na quarta-feira (18) colocou o relatório em leilão juntamente com 30 cartas assinadas por Conan Doyle sobre o caso – 24 delas enviadas a Anson. "A nova prova foi totalmente falsificada e plantada por Anson, como parte de uma tramoia complexa que envolveu Royden Sharp."

Julian Barnes -cujo romance "Arthur and George", incluído entre os finalistas para o Prêmio Booker, relata a história de Edalji-disse saber que Conan Doyle "recebeu uma carta ameaçadora em Londres e tirou a conclusão óbvia de que o autor da carta era um dos vilões da história, que estaria tentando desencorajá-lo de investigar o caso".

"A ideia de que o autor da carta tenha na realidade sido o chefe de polícia é chocante", disse Barnes, cujo romance foi adaptado para a televisão pela emissora ITV em um seriado estrelado por Martin Clunes no papel de Conan Doyle e Arsher Eli como Georde Edalji.

REVIRAVOLTAS
As reviravoltas do caso de Edalji já eram suficientemente complicadas. Filho de pai indiano e mãe inglesa, o advogado foi condenado em 1903 a sete anos de trabalhos forçados por mutilação de animais e por escrever cartas anônimas caluniosas. Libertado depois de cumprir três anos da sentença, pediu ajuda a Conan Doyle para comprovar sua inocência.

Conan Doyle acreditou em Edalji e estava convencido de que "a questão da cor pesou em sua condenação", disse Barnes, acrescentando que "hoje usaríamos o termo 'racismo institucional' para descrever os atos da polícia de Staffordshire".

Entre agosto e outubro de 1907, Conan Doyle bombardeou Anson com cartas quase diárias, fornecendo novas evidências forenses e propondo suspeitos alternativos, enviando petições ao Ministério do Interior e dando declarações públicas sobre a condenação de Edalji. Vindo do criador do detetive mais famoso do mundo, não foi pouca coisa.

"Dá para imaginar que Anson teria ficado incrivelmente irritado pelo caso, que já tinha sido dado como resolvido havia muito tempo", disse Barnes. "Mas que ele tenha chegado ao ponto de forjar provas... Obviamente ele era um homem muito autoconfiante, e foi em parte por isso que ele e Conan Doyle se desentenderam tão seriamente. Apesar de serem dois 'gentlemen' [cavalheiros] britânicos, acabaram se confrontando como dois pitbulls."

As cartas, que fazem parte de uma coleção particular que a casa Bonhams ofereceu em leilão em 18 de março, revelam como a relação entre eles deteriorou e mostram a frustração crescente sentida por Conan Doyle: "Nunca pensei que meus argumentos fossem suficientemente fortes para ser usados pela promotoria. Mas dizer que 'não há absolutamente nada' contra um homem que exibiu uma arma e disse que ela é do tipo daquela com que foram cometidas as mutilações, isso me faz pensar que não adianta nada conseguir provas de alguma coisa."

Mais tarde, ele escreveria que, lamentavelmente, não conseguiu que Edalji fosse indenizado por ter sido falsamente acusado -"para a vergonha profunda da administração britânica". E disse a Anson: "Sua carta é uma série de imprecisões misturadas com boa dose de descortesia". Através de seus advogados, Conan Doyle acabou pedindo que Anson não o contatasse mais, a não ser que o fizesse por meio dos canais legais.

As cartas também revelam a fúria crescente do chefe de polícia. Em uma delas, ele escreve: "Será que CD [Conan Doyle] enlouqueceu?". Em outra, afirma que "este assunto é uma questão pessoal entre sir A. Doyle e eu".

Num apêndice aposto a seu memorando impresso sobre o caso, Anson revela que forjou a prova e comentou a reação do escritor: "Foi com base em 'evidências' e 'provas' com as que ele obteve na instância acima descrita que o grande Sherlock Holmes baseou suas acusações".

DETETIVE AMADOR
"Ele quer deixar subentendido que Conan Doyle não passa de um detetive amador", disse Lindberg, acrescentando que Anson dava a impressão de sentir orgulho por sua carta supostamente enviada por um informante anônimo. Anson escreveu: "Há um veio de humor que percorre a carta mas que, receio, passou despercebido por seu destinatário um tanto obtuso".

Mas, segundo Sarah Lindberg, Conan Doyle mais tarde "intuiu que tinha sido ludibriado", tendo escrito a Anson em uma de suas cartas: "Não há nada de assombroso nisso. Isso não derruba meus argumentos, de modo algum, como o senhor parece imaginar."

O criador de Sherlock Holmes continuou convencido da inocência de George Edalji, como Julian Barnes também continua hoje. Em 1934, um trabalhador braçal, Enoch Knowles, confessou ter escrito as cartas anônimas e foi preso. Mas nunca foi descoberta a real identidade do mutilador de cavalos.

Enquanto isso, Julian Barnes não pretende rever "Arthur and George" na esteira das novas evidências, mas pode incluir a revelação delas num posfácio que escreverá para a próxima edição do livro.

"Acho que as novas evidências não modificam o caso substancialmente, mas são um detalhe interessante que nos revela muito sobre Anson", comentou o romancista premiado com o Booker. "Se eu tivesse sabido delas, as teria incluído no livro. Isto é mais uma prova de como G.A. Anson se aferrou à sua posição. E me faz perguntar o que mais ele não terá incluído ou deixado de fora de seu relatório."

Tradução de CLARA ALLAIN


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