Folha de S. Paulo


Poema desconhecido que Machado de Assis escreveu aos 17 anos é descoberto

Um dos primeiros textos de Machado de Assis (1839-1908) publicados em jornal, quando ele tinha 17 anos, passou quase 160 anos despercebido pelos inúmeros pesquisadores que já se debruçaram sobre vida e obra do autor, um dos mais estudados do país e tido como nosso maior escritor.

O material, um poema de 76 versos distribuídos em nove estrofes irregulares, circulou em 9 de setembro de 1856, sob o patriótico título de "O Grito do Ipiranga" e com a assinatura Joaquim Maria Machado de Assis, no jornal carioca "Correio Mercantil", um dos mais importantes da época.

Assim como outros escritos do adolescente Machado, não é um poema que se destaque pela qualidade literária, mas trata-se de um ponto fora da curva do que se conhecia da biografia do autor.

Coleção Manoel Portinari Leão
O escritor Machado de Assis, aos 25 anos, em uma de suas poucas fotos de juventude
O escritor Machado de Assis, aos 25 anos, em uma de suas poucas fotos de juventude

Machado publicou seu primeiro poema em 1854, aos 15 anos, no pequeno "Periódico dos Pobres" e, até 1857, era a revista de variedades "Marmota Fluminense", que circulava entre a jovem intelectualidade carioca, o principal veículo de sua produção.

Segundo levantamentos do francês Jean-Michel Massa (1930-2012), mais reconhecido estudioso da juventude do escritor, só em 1858, aos 19 anos, Machado chegaria ao jornalão –como revisor e, depois, publicando poemas.

O achado é de Wilton Marques, 50, professor do departamento de letras e da pós-graduacão em literatura da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e da pós-graduacão em estudos literários da Unesp/Araraquara.

Marques vem estudando a influência dos românticos na formação de Machado. Dias atrás, acessou o site da Hemeroteca Digital Brasileira para ler no original os textos coligidos por Massa em 1965.

Acontece que a busca dos arquivos digitais abrange períodos, e não anos isolados. Ao procurar "Machado de Assis" no intervalo entre 1850 a 1859, achou o poema.

O texto ficou de fora de dois títulos recentes com a produção poética de Machado, "Toda Poesia" (Record, org. Cláudio Murilo Leal) e "A Poesia Completa" (Edusp/Nankin, org. Rutzkaya Queiroz dos Reis), por motivo simples: eles são de 2008 e 2009, respectivamente, e a Biblioteca Nacional pôs no ar sua Hemeroteca Digital em 2012.

Como os extensos estudos de Massa haviam apontado 1858 como ano de estreia de Machado no "Correio Mercantil", nenhum pesquisador folheara edições anteriores.

"Resolvi checar as fontes e deparei com 'O Grito do Ipiranga'. Como estava familiarizado com a produção poética daquele momento, fiquei curioso, não lembrava ter lido tal texto", diz Marques.

Não é comum virem à tona textos desconhecidos de Machado. Uma crônica de 1885 assinada sob o pseudônimo Lélio, cuja descoberta foi noticiada pela Folha em 1998, entrou nas "Obras Completas" da Nova Aguilar.

Em 2003, inéditos em livro localizados por Djalma Cavalcante na Biblioteca do Congresso de Washington foram incluídos nos "Contos Completos de Machado de Assis" (UFJF/Imesp/ABL).

O estudioso Mauro Rosso já levantou textos pouco ou nada conhecidos, como "Um para o Outro", de 1879, que entrou em "Contos de Machado de Assis: Relicários e Raisonnés" (PUC-Rio/Loyola).

PRECOCE

O diferencial do poema localizado por Marques é que traz informação sobre um período muito pouco conhecido –quase não há documentos relativos à juventude do Bruxo do Cosme Velho.

"Não se sabe bem como chegou aos círculos intelectuais. Veio de família humilde, teve uma educação não formal que não está muito clara", diz Hélio de Seixas Guimarães, autor de "Os Leitores de Machado de Assis" (Nankin/Edusp).

"Agora, ficamos sabendo que aos 17, e não aos 19, teve espaço num jornal em que publicava gente estabelecida. É uma inserção precoce."

Matías M. Molina, autor de "História dos Jornais no Brasil" (Companhia das Letras), lembra que o "Correio Mercantil" (1848- 1868) foi o veículo em que primeiro circulou a história de "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida, e onde publicavam Gonçalves Dias e José de Alencar.

Valentim Facioli, editor da Nankin, que tem no catálogo diversos títulos sobre o autor, diz ter ficado "perplexo diante do poema e da assinatura do Machado, com nome completo, como ele fazia ainda muito jovem" (a primeira assinatura só como Machado de Assis data de 1858, como aponta Rutzkaya Queiroz).

"É incrível o poema ter escapado a todos os pesquisadores. Ninguém imaginaria a publicação num jornal tradicional, massudo, do poema comemorativo e patrioteiro do jovem Machado", diz.

No poema, o rapaz enaltece d. Pedro 1º em versos hiperbólicos como "Tomando o sabre, dominou dois mundos/ O herói libertador, valente e ousado!/ Ele, o tronco da nossa liberdade,/ Foi como o cedro secular do Líbano,/ Que resiste ao tufão e às tempestades!".

"PATRIAMADA"
Rutzkaya lembra que, embora poemas dedicados a musas fossem mais comuns a Machado na época, questões relativas à pátria ou a figuras do Império também apareciam na produção do autor.

"Com a descoberta de um texto, a curiosidade sobre a qualidade é latente. No entanto, a leitura acompanhada de pesquisa poderá responder sobre esse aspecto e outros não notados. Não se trata de preciosismo ou tentativa de reabilitar o poeta", ela diz, lembrando que muitos estudiosos não consideram a poesia de Machado "grande coisa".

Para Marques, "ainda que levemos em conta que é um poema de juventude, é interessante ver que Machado também pagou seu tributo a uma característica comum da poesia romântica brasileira, a dicção 'patriamada'".

Uma nova edição da "Obra Completa", pela Nova Aguilar, deve sair neste ano sem o poema. Facioli, que edita "A Poesia Completa", diz que pode inclui-lo na próxima edição, mas falta vender metade da tiragem original, de 2.000 cópias. A Record diz que o "Toda Poesia", com 2.600 cópias vendidas, pode trazê-lo em edição futura.

Editoria de Arte/Folhapress
Transcrição do poema
Transcrição do poema "O Grito do Ipiranga", atualizado ortograficamente por Wilton Marques, professor da UFSCar

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