Folha de S. Paulo


Crítica: Montagem holandesa revê os sentidos da palavra 'habitar'

Para conduzir o público pela topografia de um luto sendo superada por um jovem executivo que perdeu o irmão, o monólogo "Canção de Muito Longe" cria dilatações textuais projetando a alma de seu personagem na superfície de uma arquitetura fria.

A montagem do grupo holandês Toneelgroep, dirigida por Ivo van Hove e coproduzida pela MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo), tem sessões até sábado (14) dentro do festival.

Lenise Pinheiro/Folhapress
Cena de 'Canção de Muito Longe', em cartaz no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação
Cena de 'Canção de Muito Longe', em cartaz no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação

O cenário austero, corte longitudinal de um imóvel estéril ligado ao lado externo por duas imensas janelas, sugere a possibilidade da interferência das estruturas rígidas nas relações. Em um andar alto, o personagem lê cartas escritas ao morto.

A sensação de isolamento permite uma versão sincera dos fatos tanto quanto monocórdica, com um único momento de irrupção da dor, um choro –com o qual a acuidade do ator holandês Eelco Smits é capaz de revelar um poço profundo.

Aos poucos, vamos percebendo que a morte afetou o personagem não só pela ausência brusca, mas também porque redirecionou nele uma percepção de si mesmo e da relação que ele, como homem, passou a manter com o mundo.

Escavando mais e mais e mais, chega-se àquilo que as duas janelas dão acesso: no fundo das transformações íntimas do personagem está a cidade de Nova York. Em suas cartas, ele vai narrar a volta motivada pelo funeral a Amsterdã, sua cidade natal, onde reencontra familiares, amigos, ruas, os odores da infância.

METRÓPOLE

Pela descrição, em contraste, das duas cidades, vem a primeiro plano a leitura de que houve a transformação inevitável do personagem na metrópole americana.

Em "A Metrópole e a Vida Espiritual" (1903), o sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918) fala sobre a questão ao defender que o excesso de estímulos dos grandes centros urbanos produziria em nós uma espécie de calo dos sentidos, tornando-nos o que chamou de "indivíduos blasé", propensos à indiferença.

Mas esse pode ser apenas um contexto. Com a irrecusável associação de que as janelas simbolizam dois olhos, o espetáculo se desdobra pelas camadas de sentido da palavra habitar.

Com holofotes do lado de fora do cenário, a luz projeta no assoalho o desenho das janelas. Habitamos corpos, depois casas, depois cidades, e o exterior desenha nossa própria sombra cá dentro.

CANÇÃO DE MUITO LONGE
QUANDO sex. (13) e sáb. (14), às 21h
ONDE Sesc Consolação - teatro Anchieta, r. Dr. Vila Nova, 245, tel. (11) 3234-3000
QUANTO R$ 20 (ingressos esgotados)
CLASSIFICAÇÃO 14 anos
COTAÇÃO ótimo


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