Folha de S. Paulo


Mestre do samba-canção, Tito Madi volta a lançar disco após 14 anos

Uma vez mais, Tito Madi. Depois de uma década e meia sem novos álbuns, o mestre do samba-canção regressa com o CD "Quero te dizer que eu amo" (Fina Flor), gravado há nove anos. Desde 2007, Madi se recupera das sequelas de um AVC (acidente vascular cerebral), esforçando-se para voltar a cantar.

Outra peleja do compositor antecede os reveses da saúde. Referência do canto de João Gilberto, Roberto Carlos e Wilson Simonal, o artista sente-se esquecido pelas rádios e pelas gigantes do mercado fonográfico. "Sei lá, isso é coisa de brasileiro", lamenta Madi, algo resignado, em entrevista à Folha, em seu apartamento no Rio.

Entre as décadas de 50 e 80, o cantor esteve presente nos catálogos da Continental, Columbia, Odeon e RCA. "Não tenho mais relação nenhuma com as gravadoras, a não ser uma vez ou outra quando adquiro uma quantidade de discos."

Foto Arquivo / Agencia O Globo
O cantor Tito Madi em fotografia tirada no Rio de Janeiro em 1964
O cantor Tito Madi em fotografia tirada no Rio de Janeiro em 1964

Em parceria com o maestro e pianista Gilson Peranzzetta, 68, o álbum foi gravado antes do acidente vascular de Madi e tardou a ser laçado em razão de imperfeições nas primeiras mixagens. "Foi uma luta para chegar a esse último som. Tive que mixar em dois canais, mas deu para salvar legal. Ficou com um timbre bonito", festeja Peranzzetta.

O estúdio Araras, em Petrópolis, não cobrou pelo uso do espaço, num comportamento idêntico ao dos músicos. A equipe de instrumentistas envolve Peranzzetta, Mauro Senise (sax/flauta), Chiquito Braga (violão/guitarra), Paulo Russo (contrabaixo acústico) e João Cortez (bateria/percussão).

Oito das 14 canções são da autoria de Madi, cinco de Peranzzetta (com parceiros como Paulo César Pinheiro e Nelson Wellington) e uma delas de Chiquito Braga e Ana Maria, "Amanhecer". "Considero Gilson o maior pianista do Brasil. Ele é do mesmo nível do grande pianista que eu tive, Luizinho Eça, com quem gravei a série 'A Fossa' (nos anos 70)", diz Madi.

Seu último disco, "Ilhas Cristais" (2001), demonstrou a permanência da voz suave e modernizadora do samba-canção nos anos 50. "Quero te dizer que eu amo" reafirma o canto maduro e acrescenta a seu cancioneiro as belas "Flor de mim" (c/ Sergio Natureza), "Indiferença" (c/ Lysias Ênio) e a faixa-título - sua favorita - "Quero te dizer que eu amo" ("Quero te contar/ Que eu chamo/ Te chamo/ E por que/ Não vens?").

O show de lançamento ocorreu no dia 26 de fevereiro, na Sala Baden Powell, no Rio, com a presença dos cantores João Senise, Claudia Telles e Áurea Martins. Sobra uma melancolia: o disco pode tornar-se o último registro vocal de Madi. "Tenho que estar com a voz tranquila, no diapasão normal. Ela talvez tenha ficado mais grave, não atinjo mais aqueles agudos que eu tinha facilidade", admite o cantor.

TRANSIÇÃO PARA A BOSSA

Paulista descendente de libaneses, Chauki Maddi renasceu artisticamente como Tito Madi e radicou-se no Rio em 1954. Um dos precursores da bossa nova, seus shows eram uma cátedra do canto moderno, equilibrado em repertório romântico sem apelos patéticos.

"Eles todos me ouviam e tinham em mim talvez uma inspiração. Eu acabo acreditando que posso ter ajudado mesmo na criação do movimento", avalia Madi, contemporâneo de Dolores Duran e Maysa. "A bossa nova é um estilo mais lento que o próprio samba-canção."

"Fico revoltada com a injustiça de Tito não estar na mídia. Se Frank Sinatra morasse no Brasil, teria que alugar um quartinho em Caxias para sobreviver", critica a cantora Doris Monteiro, uma das estrelas surgidas nos anos 50.

"Se, nos últimos anos, tivemos muito menos Tito Madi do que merecíamos, culpe o mercado, o sistema, a conjuntura. Os tempos não estão propícios à sensibilidade", analisa o escritor e colunista da Folha Ruy Castro, no encarte do disco.

O artista acredita que será lembrado pelas músicas "Não diga não", "Cansei de Ilusões", "Chove Lá Fora" e a bossanovista "Balanço Zona Sul" – acrescente-se "Carinho e Amor" e "Quero-te Assim", numa obra à espera de redescobertas.

"Como compositor, Dorival Caymmi era a minha influência. Lúcio Alves e Dick Farney, como cantor", filia-se Madi, que calcula ter mais de 300 canções gravadas por ele próprio e por outros intérpretes. Resta um acervo de 15 inéditas.

Sua canção mais conhecida, "Chove Lá Fora" foi interpretada pelas maiores vozes brasileiras, de Agostinho dos Santos a Milton Nascimento, sem escapar a uma versão em inglês do grupo vocal americano The Platters.

O tom angustiado da música não tem afinidade com o espírito do compositor no momento da criação. "Fazia um calor imenso. Eu passava as férias em minha cidade, Pirajuí (SP), em uma fazenda de minha irmã e meu cunhado", revela. "Lá tinha um lago, e tinha um barco, e tinha uma árvore imensa caída dentro do lago... Aí eu subi no barco —estava com um violão—, entrei embaixo dos galhos da árvore, uma sombra muito prazerosa, e compus 'Chove Lá Fora' ali. Não tinha chuva nenhuma."

Tito Madi sonha em retornar aos estúdios, mas reconhece as limitações impostas pelo AVC. "Quero ver se a minha voz fica normal, porque eu quero continuar gravando e compondo. Não posso nem tocar violão por causa do braço [esquerdo], que não tem movimento", lastima. É com alegria, ainda, que acarinha sua cadelinha na sala: "Gabi, Gabi! Veja, ela está calma!".

PROMESSA DO REI

Discípulo confesso de Tito Madi, Roberto Carlos prometeu gravar um disco com as composições do ídolo, mas interrompeu o diálogo sem justificativas. Na entrega do 17º Prêmio Shell de Música a Roberto e Erasmo Carlos, em 1997, Madi ouviu afagos públicos do "Rei".

O canto relembra o encontro no camarim: "Eu disse a ele [Roberto]: você gravou um disco em espanhol, poderia ter gravado 'Chove Lá Fora', pois existe a versão de um argentino. Ele balançou a cabeça e falou: 'Não, eu quero gravar um disco com a condição de você participar'".

"Roberto criou nele uma expectativa. Dedicou o show, trocou telefonemas e mandou um motorista pegar as músicas escolhidas", narra Francisco Bonadio, grande amigo de Madi.

"Eu fiquei triste porque seria uma coisa maravilhosa. Uma coisa boa pra mim e pra ele também, porque mudaria um pouquinho o estilo de compor e de cantar", opina o quase homenageado.

Roberto Carlos não respondeu as perguntas da Folha. A assessoria de imprensa informou que o artista se preparava para o início do cruzeiro "Emoções em alto mar 2015".

VIOLADA BOSSA NOVA

Ex-hóspede de Tito Madi no Rio de Janeiro, o cantor João Gilberto prometeu gravar "Chove Lá Fora" nos anos 50, mas uma briga gelou a amizade antes do registro em disco. Em 1961, no teatro Paramount, em São Paulo, o músico baiano acertou um violão na cabeça de Madi.

A briga se encerrou, definitivamente, na turnê de 2008, quando o mestre da Bossa Nova incluiu "Chove Lá Fora" no roteiro do show e enviou um convite ao amigo, em sinal de concórdia. Convalescente do AVC, Madi não conseguiu ir ao espetáculo no Rio, mas aprovou a performance com um andamento bem diferente de uma gravação informal dos anos 50.

"Ah, acabou. Não tem mais problema. Não guardo nenhuma mágoa dele. Sou fã ainda do João Gilberto", declara o músico.

Um raro pedido de silêncio a João resultou na pancada em Madi, que levou dez pontos e, por algum tempo, penaria com um inquérito policial aberto à sua revelia.

O cantor narra: "Aconteceu um problema durante o recebimento do Troféu Chico Viola. Ele estava num estúdio bem próximo, cantando com a Elza Soares, e o rapaz que tomava conta do palco pediu silêncio. Nós começamos a fazer 'psiu' pra ele, que soltou uma palavra não muito delicada, uma coisa que eu achei que ele estava fazendo pra mim. E eu também estava fazendo 'psiu' pra ele".

João Gilberto fez um gesto ofensivo, Madi o empurrou. "Não dei um soco. Empurrei. Ele levantou o violão e só tive tempo de levantar a cabeça e receber uma violenta pancada. Aí ele saiu correndo, abandonou o Teatro da Record, foi para o hotel. Mas o diretor da Odeon foi lá, o apanhou e ele voltou. Não pude receber o troféu, que não me foi entregue depois", lembra.

Pela televisão, Tito Madi acompanha os novos cantores e compositores, sem guardar tanto entuasiasmo pelo que aparece na vitrine midiática. "Eu vejo, mas não gosto da fase atual da música popular", afirma.

"Não vejo muita coisa romântica, não. Tem dupla sertaneja, pagode... Os produtores musicais preferem essas coisas mais movimentadas". Um sucessor solitário na temática romântica, admirado por Madi? Djavan.

QUERO TE DIZER QUE EU AMO
ARTISTA Tito Madi e Gilson Peranzzetta
GRAVADORA Fina Flor
QUANTO R$ 30,00


Endereço da página: