Folha de S. Paulo


'Só louco faz teatro, porque mata', afirma diretor russo

Marco do teatro moderno com a montagem de Stanislavski em 1898, "A Gaivota" abre o MITsp apresentando o que há de mais significativo no teatro russo contemporâneo, do diretor Yuri Butusov.

Para a professora da USP Elena Vássina, de "Teatro Russo: Literatura e Espetáculo" (Ateliê, 2011), que viu a peça em Moscou, trata-se do "grande nome de encenador que aparece no século 21".

Segundo Butusov, 54, sua encenação mostra como "só loucos podem fazer teatro, porque esgota e mata". Em entrevista, diz que "é doloroso confessar que estamos caminhando para o totalitarismo", na Rússia, e que sente necessidade de responder. Sua nova peça será um texto proibido por Stálin em 1928.

Ekaterina Tsvetkova/Divulgação
Cena da peça
"A Gaivota", texto de Tchékhov dirigido pelo russo Yuri Butusov; peça abre a programação da 2ª MITsp

Folha - "A Gaivota" é uma peça sobre o próprio teatro.

Yuri Butusov - Fala da beleza do teatro, como é adorável e ao mesmo tempo terrível. Só loucos podem fazer, porque ele esgota e mata. É sobre isso que fala o nosso espetáculo.

Como isso se reflete no palco?

O espetáculo inteiro fala dessa loucura. Mas ele é dedicado a uma atriz, Valentina Karavaeva [1921-97]. Ela era muito famosa na juventude, no teatro e no cinema, mas depois ninguém mais a chamou. Estava morrendo sozinha e na miséria, no seu pequeno apartamento, mas tinha uma câmera, e morrendo, morrendo mesmo, fez o monólogo da Nina [de "A Gaivota"]. Não tinha ninguém para desligar a câmera, que ficou filmando a morte. A dedicatória precede o espetáculo e fala dessa força do teatro, que é mais forte que a morte.

O que diferencia o teatro que você faz do de Stanislavski, em "A Gaivota", por exemplo?

Não acho que qualquer diretor russo que monte "A Gaivota" hoje remeta a Stanislavski. Somos pessoas livres, não nos submetemos a autoridades. E não vi o espetáculo, não posso me comparar. O teatro é uma coisa viva, e é essa vida no palco que importa. Como não vi a montagem de Stanislavski, não tenho como saber como era aquela vida. Mas hoje temos mais liberdade em relação ao texto e podemos brincar com ele como se fosse um ser vivo.

A visão da Rússia no Brasil hoje é de um país com censura e autoritarismo. Você enfrenta restrições? A MITsp tem como tema as zonas de conflito. Como você vê a crise na Ucrânia? O que o teatro pode fazer, diante do conflito armado?

A influência desses conflitos não é direta. Depois de "A Gaivota", fiz o espetáculo "Cabaré Brecht" e, de repente, o texto desse espetáculo se tornou terrivelmente contemporâneo, porque fala da guerra. O público está recebendo esses textos com o fôlego preso, e nos apavoramos porque nos sentimos parte dessa situação terrível.

Estou consciente de uma mudança que se passa em mim, sinto que a minha resposta ao que acontece no mundo deve ser mais direta, e é doloroso confessar que neste instante estamos caminhando para o totalitarismo. Fico cada vez mais assustado e sinto a necessidade de responder, de tomar posição.

A escolha de Mikhail Bulgákov (1891-1940) para seu novo espetáculo se deve a essa necessidade? Qual é o texto?

De verdade, estou pensando muito nisso, mas não é uma resposta imediata. É um pensamento interior, uma intuição minha. E a escolha de Bulgákov não aconteceu agora, junto com o conflito russo-ucraniano. Aconteceu tempos atrás, porque essa mudança interna já havia começado. A peça escolhida é "A Fuga" [sobre o fim da guerra civil russa, do ponto de vista dos militares czaristas derrotados, e a decisão de deixar o país]. Não quero falar agora diretamente da imigração, mas essa ideia, "será que fico, será que vou para outro país", já começou a nascer em todas as almas, em todas as cabeças.


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