Folha de S. Paulo


'Por que comigo, Senhor?', diz Bob Dylan sobre seus críticos; leia discurso

De dar poucas entrevistas e falar só o essencial em shows, Bob Dylan, aos 73, fez uma das aparições mais marcantes da sua história na sexta (6). Em festa em sua homenagem em Los Angeles, promovida pelo Grammy com a fundação MusiCares, de amparo a artistas com dificuldades financeiras, Dylan discursou por quase 40 minutos.

Chamou atenção ao se mostrar incomodado com o tratamento que recebe de críticos. Leia trechos e, ao final, a íntegra do discurso:

Minha voz

Os críticos sempre estiveram no meu pé, desde o primeiro dia. Sempre deram a mim um tratamento especial. Alguns críticos musicais dizem que eu não sei cantar. Eu coaxo. Soo como um sapo. Por que esses mesmos críticos não dizem coisas semelhantes sobre Tom Waits? Dizem que a minha voz falha. Eles dizem que eu não tenho voz. Por que não dizem essas coisas sobre Leonard Cohen? Por que eu recebo um tratamento especial? Críticos dizem que eu desafino e canto como se estivesse falando. Sério? Nunca ouvi dizerem isso de Lou Reed. Por que ele fica ileso? O que eu fiz para merecer esse tratamento especial? Por que comigo, Senhor?

Mario Anzuoni - 6.fev.2015/Reuters
Bob Dylan durante discurso em festa em sua homenagem em Los Angeles, na última sexta (6)
Bob Dylan durante discurso em festa em sua homenagem em Los Angeles, na última sexta (6)

Confundo expectativas?

Dizem que eu fiz a minha carreira confundindo expectativas. Sério? Pois isso é tudo que eu faço? É isso que eu posso pensar: confundir expectativas... Tipo, fico acordado tarde da noite pensando em como fazer isso... "O que você faz da vida, cara?" "Ah, eu confundo expectativas." [...] Eu nem mesmo sei o que isso significa ou quem tem tempo para fazer uma coisa dessas.

Disco novo

Acabo de lançar um álbum de standards, todas canções gravadas por Michael Bublé, Harry Connick Jr., talvez Brian Wilson, Linda Ronstadt. Rod [Stewart], com certeza, e mesmo Paul [McCartney] gravou esse tipo de material. Mas as críticas dos discos deles não são como as minhas. Nas críticas deles, ninguém diz nada. Nas minhas críticas, eles têm que olhar debaixo de cada pedra para poder relatar isso.

*

Abaixo, a íntegra do discurso traduzido de Bob Dylan:

Há algumas pessoas que precisamos agradecer esta noite, por terem produzido este evento grandioso. Neil Portnow, Dana Tamarkin, Rob Light, Brian Greenbaum, Don Was. E também queria agradecer o presidente Carter por ter vindo. Foi uma longa noite e não quero falar demais, mas direi algumas coisas.

Estou contente por ter minhas músicas homenageadas dessa forma. Mas sabe, elas não chegaram aqui sozinhas. Tem sido uma longa estrada e deu muito trabalho. Essas minhas canções, eu as vejo como uma peça misteriosa, do tipo que Shakespeare viu quando crescia. Eu acho que seria possível ver o que eu faço voltando àqueles tempos. Eles não eram tendência na época, e eu acho que eles não são tendência agora. E eles soam como se tivessem passado por dificuldades.

Eu preciso mencionar algumas pessoas que ao longo do caminho possibilitaram isso. Eu sei que deveria mencionar John Hammond, um grande caçador de talentos, que naquela época me trouxe para a Columbia Records. Ele me fez assinar com aquele selo quando eu não era ninguém. Foi necessária muita fé para fazer isso, e ele foi muito ridicularizado, mas ele era um homem independente e ele era corajoso. E por isso, sou eternamente grato. A última pessoa que ele "descobriu" antes de mim foi Aretha Franklin, e antes dela, Count Basie, Billie Holiday e muitos outros artistas. Todos artistas não comerciais. Tendências não interessavam a John, e eu não era nada comercial, mas ele ficou comigo. Ele acreditou no meu talento e isso é tudo o que importava. Eu não posso agradecê-lo suficientemente para isso.

Lou Levy tocava a Leeds Music, e eles lançaram minhas primeiras músicas, mas eu não fiquei lá por muito tempo. O próprio Levy, o conheço de outros tempos. Ele assinou-me com sua empresa e gravou minhas músicas, e eu as cantava em um gravador de fita. Ele me disse abertamente que não havia nenhum precedente para o que eu estava fazendo, que eu estava à frente do meu tempo ou atrás dele. E se eu lhe trouxesse uma canção como "Stardust", ele recusaria porque seria tarde demais. Ele me disse que se eu estivesse à frente do meu tempo –e ele não sabia ao certo– mas se era isso que estava acontecendo e se isso fosse verdade, o público normalmente levaria de três a cinco anos para acompanhar –então se prepare. E foi o que aconteceu. O problema era que, quando o público conseguiu me acompanhar, eu já estava de três a cinco anos à frente daquilo, então isso meio que complicou. Mas ele estava me encorajando e não me julgava, e eu sempre me lembrarei dele por isso.

Artie Mogull, da Witmark Music, assinou-me com sua gravadora e ele me disse para continuar escrevendo músicas acontecesse o que acontecesse, que eu poderia fazer algo importante. Bem, ele também me apoiou, e ele nunca conseguia esperar para ver o que eu faria a seguir. Eu nem mesmo pensava em mim como um compositor antes disso. Serei sempre grato a ele, também por essa atitude.

Eu também tenho que mencionar alguns dos primeiros artistas que gravaram minhas músicas muito, muito cedo, sem que fossem solicitados. Eles apenas sentiram algo sobre elas, que era certo para eles. Eu tenho que dizer obrigado a Peter, Paul e Mary, q eu já os conhecia separadamente, antes que eles se tornassem um grupo. Eu nem mesmo havia pensado que escreveria músicas para outros cantarem, mas isto estava começando a acontecer e não poderia ter acontecido para, ou, com um grupo melhor. Eles pegaram uma música minha que havia sido gravada e, antes que ela fosse enterrada em um dos meus discos, a transformaram em uma canção de sucesso. Não do jeito que eu teria feito - eles a consertaram. Mas desde então, centenas de pessoas a gravaram, e acho que isso não teria acontecido se não fosse por eles. Eles certamente começaram algo para mim.

The Byrds, os Turtles, Sonny & Cher - eles fizeram algumas das minhas músicas estarem entre as dez mais tocadas, mas eu não era um compositor de pop e realmente não queria ser isso, mas foi bom que isso aconteceu. Suas versões das minhas músicas eram como comerciais, mas não me importei de fato com aquilo, porque 50 anos mais tarde, minhas músicas estavam sendo usadas em comerciais. Portanto, isso foi bom também. Estou contente por ter acontecido e feliz por eles terem feito isso.

Pervis Staples e os Staple Singers, muito antes de irem para a [gravadora] Stax, eles estavam na Epic e eles foram um dos meus grupos favoritos desde sempre. Eu conheci todos em 1962 ou 1963. Eles ouviam minhas músicas ao vivo, e Pervis queria gravar três ou quatro delas e ele fez isso com os Staples Singers. Eles eram o tipo de artistas que eu queria que gravassem minhas canções, se alguém fosse fazer isso.

Nina Simone. Eu costumava cruzar seu caminho em Nova York, no clube Village Gate. Ela era uma artista que definitivamente chamada à atenção. Ela gravou algumas de minhas músicas, que conheceu diretamente por mim, sentada em um camarim. Ela era uma artista, pianista e cantora impressionante. Uma mulher muito forte, franca e possuía uma performance explosiva. E ela estava gravando minhas músicas, validando tudo o que eu era. Nina era o tipo de artista que eu amava e admirava.

Ah, e não posso esquecer-me de Jimi Hendrix. Na verdade, vi o Jimi Hendrix tocar quando ele estava em uma banda chamada Jimmy James and the Blue Flames, algo assim. E Jimi nem cantava. Ele apenas tocava guitarra. Depois que ele ficou famoso, ele pegou algumas das minhas pequenas canções, que ninguém prestava atenção, e as lançou para fora dos limites da estratosfera, transformando-as em clássicos. Eu tenho que agradecer a Jimi também. Eu gostaria que ele estivesse aqui.

Johnny Cash também gravou algumas de minhas músicas desde o início. Eu o conheci por volta de 1963, quando ele era apenas pele e osso. Ele passou por um longo e duro caminho, mas era meu herói. Ouvi muitas de suas músicas enquanto crescia. Conheço-as melhor do que as minhas. "Big River", "I Walk the Line." "How High's The Water, Mama?" Eu escrevi "It's Alright Ma (I'm Only Bleeding)", com essa canção reverberando na minha cabeça. Eu ainda pergunto, "How high is the water, mama?"

Johnny tinha uma personalidade intensa. E ele viu que as pessoas estavam me colocando para baixo ao tocar música elétrica, e ele publicou cartas em revistas repreendendo-as, dizendo-lhes que calassem a boca e deixassem-me cantar. No mundo de Johnny Cash –um pesado drama sulista– esse tipo de coisa não existia. Ninguém dizia a ninguém o que cantar ou fazer. Simplesmente não faziam esse tipo de coisa no lugar de onde ele veio. Eu sempre o agradecerei por isso. Johnny Cash foi um gigante, o homem de preto. E eu irei sempre prezar pela amizade que tínhamos, até o dia em que não houver mais dias.

Ah, eu seria negligente se não mencionasse Joan Baez. Ela era a rainha da música folk daquela época e de agora. Ela pegou gosto pelas minhas músicas e levou-me com ela para tocar em shows onde havia multidões de milhares de pessoas encantadas com sua beleza e voz. As pessoas diziam: "O que você está fazendo com essa gentalha insignificante que se parece com um mendigo?" E ela dizia a todos, sem rodeios: "Agora, é melhor você ficar quieto e ouvir as músicas dele." Nós tocamos algumas delas juntos. Joan Baez é tão cabeça-dura como parece. Leal, de mente livre e ferozmente independente. Ninguém pode dizer a ela o que fazer, se ela não quer fazê-lo. Eu aprendi muitas coisas com ela. Uma mulher de uma honestidade devastadora. E eu nunca poderei pagar por aquela nova forma de amor e devoção.

Essas músicas não saíram do nada. Eu não as inventei, elas não são totalmente fantasiosas. Ao contrário do que Lou Levy disse, havia um precedente. Tudo veio da música tradicional: música folk tradicional, rock'n'roll tradicional e música das orquestras de big-bands tradicionais.

Aprendi as letras e como escrevê-las, ouvindo canções folk. E eu as tocava e conhecia pessoas que também as tocavam, lá atrás, quando ninguém estava fazendo isso. Eu cantava nada além dessas canções folk, e elas me ensinaram a jogar limpo, mostraram que tudo pertence a todos. Por três ou quatro anos, ouvi apenas clássicos do folk. Eu ia para cama cantando músicas folk. Eu as cantava em todos os lugares: clubes, festas, bares, cafés, campos, festivais. E, pelo caminho, conheci outros cantores que também faziam a mesma coisa e nós aprendíamos músicas uns com os outros. Eu poderia aprender uma canção e cantá-la uma hora depois se a ouvisse apenas uma vez.

Se você cantasse "John Henry" tantas vezes quanto eu – "John Henry era um homem que quebrava pedras / Morreu com um martelo na mão / John Henry disse que um homem não é nada além de um homem / Antes que eu deixe que aquele vapor da broca me derrube / Eu vou morrer com esse martelo na minha mão" ["John Henry was a steel-driving man / Died with a hammer in his hand / John Henry said a man ain't nothin' but a man / Before I let that steam drill drive me down / I'll die with that hammer in my hand"].

Se você tivesse cantado aquela música tantas vezes quanto eu, você também teria escrito: "Quantas estradas um homem precisa percorrer?" ["How many roads must a man walk down?"] too.

Big Bill Broonzy tinha uma música que se chamava "Key to the Highway." "Eu tenho a chave para a via espressa / Eu tenho reserva e estou prestes a ir / Vou sair daqui correndo porque andando é muito devagar" ["I've got a key to the highway / I'm booked and I'm bound to go / Gonna leave here runnin' because walking is most too slow"]. Eu cantei muito isso. Se você tivesse cantado muito isso, você talvez tivesse escrito:

Georgia Sam, seu nariz sangrava [Georgia Sam he had a bloody nose]

O departamento de assistência social não lhe dava nada [Welfare Department they wouldn't give him no clothes]

Ele perguntou ao pobre Howard, para onde posso ir [He asked poor Howard where can I go]

Howard disse que havia apenas um lugar que ele conhecia [Howard said there's only one place I know]

Sam disse, diga-me rápido, cara, tenho de correr [Sam said tell me quick man I got to run]

Howard apenas apontou com sua arma [Howard just pointed with his gun]

E disse, o caminho para a Highway 61 [And said that way down on Highway 61]

Você também teria escrito isso se tivesse cantado "Key to the Highway" tanto quanto eu.

"É inútil sentar e chorar / Você será um anjo mais tarde / Naveguem, senhoras, naveguem para longe". "Eu estou partindo meu verdadeiro amor." ["Ain't no use sit 'n cry / You'll be an angel by and by / Sail away, ladies, sail away. I'm sailing away my own true love"]. "Boots of Spanish Leather". Sheryl Crow acabou de cantar essa.

"Deixe o algodão rolar, ah, sim, deixe o algodão rolar / Dez dólares por dia é o pagamento para um homem branco / Deixe o algodão rolar / Um dólar por dia é o pagamento para um negro / Deixe o algodão rolar." ["Roll the cotton down, aw, yeah, roll the cotton down / Ten dollars a day is a white man's pay / Roll the cotton down/A dollar a day is the black man's pay / Roll the cotton down"]. Se você cantasse aquela música tanto quanto eu, você também escreveria "Eu não vou trabalhar mais na fazenda de Maggie" ["I ain't gonna work on Maggie's farm no more"]. Se você tivesse ouvido Robert Johnson cantar "É melhor vir para minha cozinha, porque vai chover lá fora" ["Better come in my kitchen, 'cause it's gonna be raining out doors"], tantas vezes quanto eu escutei, algum tempo depois, você possivelmente escreveria "Uma chuva forte vai cair", ["A Hard Rain's a-Gonna Fall"].

Eu cantei muitas canções "come all you" [gênero escocês, em que uma música começa com um chamado]. Há muitas delas. Demasiadas para serem contadas. "Cheguem mais, meninos e ouçam minha história / Vou contar-lhes sobre os meus problemas na velha picada do Chisholm" ["Come along boys and listen to my tale / Tell you of my troubles on the old Chisholm Trail"]. Ou, "Venham todos vocês, boas pessoas, ouçam enquanto digo / o destino de Floyd Collins, um rapaz que todos conhecemos bem ["Come all ye good people, listen while I tell / the fate of Floyd Collins, a lad we all know well"].

"Venham todos vocês, senhoras justas e meigas / Atenção a como vocês agradam seus homens / Eles são como uma estrela em uma manhã de verão / Eles aparecem no início e depois somem novamente ["Come all ye fair and tender ladies / Take warning how you court your men / They're like a star on a summer morning / They first appear and then they're gone again".] E ainda há esta aqui, "Cheguem mais, pessoal / Uma história vou contar / Sobre Floyd, o bonito garoto fora da lei / Oklahoma conhecia-o bem ["Gather 'round, people / A story I will tell / 'Bout Pretty Boy Floyd, the outlaw / Oklahoma knew him well"].

"Se você cantou todas essas músicas "come all ye", o tempo todo, como eu fiz, você estaria escrevendo, "Venham, pessoal, por onde quer que andem / Admitam que as águas ao seu redor têm aumentado / Aceitem que em breve vocês estarão encharcados até os ossos / Se para vocês, vale a pena poupar seu tempo / É melhor começarem a nadar ou afundarão como uma pedra / Os tempos estão mudando ["Come gather 'round people where ever you roam, admit that the waters around you have grown / Accept that soon you'll be drenched to the bone / If your time to you is worth saving / And you better start swimming or you'll sink like a stone / The times they are a-changing"].

Você teria escrito isso também. Não há segredo. Isso é feito subliminarmente e inconscientemente, porque é o suficiente, e é tudo o que você sabe. Isso foi o mais importante para mim. Era o tipo de canções que faziam sentido. "Quando você for para a Deep Ellum, mantenha seu dinheiro nas meias / As mulheres da Deep Ellum te levam à falência." ["When you go down to Deep Ellum keep your money in your socks / Women on Deep Ellum put you on the rocks."] Cante essa música por um tempo e você criará: "Quando você está perdido na chuva em Juarez, e ainda for Páscoa / E a sua moral estiver baixa e a negatividade não deixar com que se levante / Não faça pose / Quando estiver na avenida Rue Morgue / Há algumas mulheres famintas lá / E elas realmente aprontam com você" ["When you're lost in the rain in Juarez and it's Easter time too / And your gravity's down and negativity don't pull you through / Don't put on any airs / When you're down on Rue Morgue Avenue / They got some hungry women there / And they really make a mess outta you"].

Todas essas músicas estão ligadas. Não se engane. Eu apenas abri uma porta diferente, de outra forma. É apenas diferente, mas diz a mesma coisa. Eu não achei que fosse fora do comum. Bem, sabe, eu apenas pensei que estava fazendo algo natural, mas desde o princípio minhas músicas foram divisionistas, por alguma razão. Elas dividiam as pessoas. Eu nunca soube o porquê. Algumas se irritavam, outros as amavam. Não sei por que minhas músicas tinham detratores e defensores. Um ambiente estranho para despejar suas músicas, mas eu fiz isso de qualquer maneira.

A última coisa em que pensei foi quem se importava com qual música eu estava escrevendo. Eu estava apenas escrevendo-as. Eu não acho que estava fazendo algo diferente. Eu pensei que eu era apenas estendendo a linha. Talvez um pouco indisciplinado, mas eu só estava aprofundando a situação. Talvez difícil de definir, mas e daí? Muitas pessoas são difíceis de definir e você tem de aguentar isso. Em certo sentido, tudo se compensava.

Leiber e Stoller não presavam muito as minhas canções. Eles não gostavam delas, mas Doc Pomus gostava. Tudo bem que eles não gostassem porque eu também nunca gostei de suas músicas. "Yakety yak, don't talk back." "Charlie Brown is a clown", "Baby I'm a hog for you". Músicas cômicas, não sérias. As canções do Doc eram melhores. "This Magic Moment. "Lonely Avenue." "Save the Last Dance for Me." Essas canções partiram meu coração. Sempre achei melhor ter suas bênçãos [de Doc] do que a deles.

Ahmet Ertegun não considerava muito minhas músicas, mas Sam Phillips, sim. Ahmet fundou a Atlantic Records. Ele produziu alguns discos grandiosos: Ray Charles, Ruth Brown, LaVerne Baker, só para citar alguns. Foram feitas grandes gravações lá, sem dúvida. Mas Sam Phillips, ele gravou Elvis e Jerry Lee, Carl Perkins e Johnny Cash.

Artistas radicais que abalaram a própria essência da humanidade. Revolucionários com visão e clarividência. Destemidos e sensíveis ao mesmo tempo. Revolução de estilo e propósito. Radical até o osso. Canções que te cortam até o osso. Renegados em todos os graus, fazendo músicas que nunca decairiam e ecoam até os dias de hoje. Ah, sim, eu preferia ter a bênção de Sam Phillips sempre.

Merle Haggard não dava muita bola para minhas músicas, mas Buck Owens dava, e ele gravou algumas das minhas primeiras músicas. Agora, eu admiro Merle: "Mama Tried", "Tonight The Bottle Let Me Down", "I'm a Lonesome Fugitive". Entendo tudo isso, mas não consigo imaginar Waylon Jennings cantando "The Bottle Let Me Down". Eu amo Merle, mas ele não é o Buck. Buck Owens escreveu "Together Again", essa canção supera qualquer coisa que já saiu de Bakersfield. Buck Owens e Merle Haggard? Se você tivesse que escolher a bênção de algum deles... você decide. O que eu quero dizer é que minhas músicas parecem dividir as pessoas. Mesmo dentro da comunidade musical.

Os críticos também. Os críticos sempre estiveram no meu pé, desde o início. Parece que eles sempre me deram tratamento especial. Alguns críticos musicais dizem que não consigo cantar. Que eu coaxo. Soo como um sapo. Por que os mesmos críticos não dizem coisas parecidas de Tom Waits? Eles dizem que minha voz é falha, que eu não tenho voz. Por que não dizem essas coisas sobre Leonard Cohen? Por que recebo um tratamento especial? Os críticos dizem que eu não sei cantar e que falo durante a canção. De verdade? Eu nunca ouvi o mesmo sobre Lou Reed. Por que é que ele fica impune? O que eu fiz para merecer esse tratamento especial? Por que comigo, Senhor?

Não tenho alcance vocal? Quando foi a última vez que você leu o mesmo sobre o Dr. John? Você nunca leu isso sobre o Dr. John. Por que não dizem isso sobre ele? Eu engulo minhas palavras, não tenho nenhuma dicção. Você deve se perguntar se esses críticos alguma vez ouviram Charley Patton ou Son House ou Wolf. Venha-me falar sobre engolir palavras e não ter dicção. Por que não dizem as mesmas coisas sobre eles?

"Por que comigo, Senhor?"

Os críticos dizem que distorço minhas melodias, que torno minhas músicas irreconhecíveis. Ah, realmente? Deixe-me dizer-te uma coisa. Eu estava em uma luta de boxe há alguns anos, vendo Floyd Mayweather lutar com um porto-riquenho. E alguém cantou o hino nacional porto-riquenho e foi lindo. Foi sincero e comovente. Depois, foi a vez do nosso hino nacional. E uma irmã, uma cantora de soul muito popular, foi escolhida para cantar. Ela cantou cada nota - que existe e algumas que não existem. Venha-me falar sobre distorcer uma melodia. Você pega uma palavra de uma sílaba e a faz durar 15 minutos? Ela estava fazendo ginástica vocal como se aquilo fosse uma apresentação de trapézio. Mas para mim não foi engraçado.

Onde estavam os críticos? Distorção de letras? Distorção de uma melodia? Desconfiguração de uma canção adorada? Não, eu levo a culpa. Mas eu realmente não acredito que faço isso. Apenas acho que os críticos dizem que eu faço.

Sam Cooke falou o seguinte quando disseram a que ele tinha uma bela voz: Ele disse: "Bem, isso é muito gentil da sua parte, mas vozes não deveriam ser medidas por quão bonita são. Em vez disso, eles se preocupam somente se o convencem de que estão dizendo a verdade." Lembre-se disso na próxima vez que estiver ouvindo algum cantor.

Os tempos sempre mudam. Eles mudam mesmo. E você tem que estar sempre pronto para algo que está surgindo e que inesperado. Há um tempo, eu estava em Nashville fazendo algumas gravações e li este artigo, uma entrevista de Tom T. Hall. Tom T. Hall, ele estava reclamando de algum tipo de música nova e ele não conseguia entender do que esses novos tipos de músicas que estavam surgindo se tratavam.

Agora, o Tom, ele foi um dos compositores mais proeminentes da época em Nashville. Muitas pessoas estavam gravando suas músicas, e ele mesmo fez isso. Mas ele estava numa piração por causa de James Taylor, uma canção que James havia chamado de "Estrada Rural" ("Country Road"). Tom estava alucinado nesta entrevista: "mas James não diz nada sobre uma estrada rural. Ele apenas conta como você pode se sentir na estrada rural. Eu não entendo." Agora, alguns podem dizer que Tom é um grande compositor. Não vou duvidar disso. Na hora que ele estava dando essa entrevista, eu estava ouvindo uma de suas músicas no rádio.

Chamava-se "I love". Eu estava ouvindo-a em um estúdio de gravação, e ele falava sobre todas as coisas que ele ama, uma canção de um homem comum, tentando se conectar com as pessoas. Tentando fazer você pensar que ele é igualzinho a você, e você é igual a ele. Todos nós amamos as mesmas coisas e estamos nessa juntos. Tom ama pequenos bebê patos, trens lentos e chuva. Ele ama as velhas caminhonetes e os pequenos riachos do país. Dormir livre de sonhos. Bourbon num copo. Café em uma xícara. Tomates na videira e cebolas. Agora ouça, nunca vou desmerecer outro compositor. Eu não farei isso. Não estou dizendo que seja uma música ruim. Só estou dizendo que talvez tenha sido produzida demais. Mas, sabe, foi para o top 10 de qualquer maneira. Tom e alguns outros escritores dominavam a cena de Nashville. Se você quisesse gravar uma música e colocá-la entre as dez mais, você tinha que alcançá-los, e Tom foi um dos melhores. Eles estavam todos muito confortáveis, fazendo sua música.

Era assim na época em que Willie Nelson voltou para o Texas. Quase na mesma época. Ele ainda está no Texas. Tudo ia muito bem. Estava tudo certo até... até.... que Kristofferson veio para a cidade. Ah, eles não haviam visto ninguém como ele. Ele veio para a cidade como o gato selvagem que ele era, ele voou com um helicóptero para o jardim de Johnny Cash. Ele não era um compositor típico. Ele ia direto à garganta. "Sunday Morning Coming Down."

Bem, acordei no domingo de manhã [Well, I woke up Sunday morning]

E não havia jeito de fazer com que a minha cabeça não doesse [With no way to hold my head that didn't hurt]

E a cerveja que tomei no café da manhã não era ruim [And the beer I had for breakfast wasn't bad]

Então, tomei mais uma de sobremesa [So I had one more for dessert]

Depois eu fucei no meu armário [Then I fumbled through my closet]

Encontrei a mais limpa das minhas camisas sujas [Found my cleanest dirty shirt]

Depois lavei meu rosto e penteei meu cabelo [Then I washed my face and combed my hair]

E tropecei nas escadas para encontrar o dia. [And stumbled down the stairs to meet the day.]

Você pode distinguir a Nashville pré-Kris e pós-Kris, porque ele mudou tudo. Aquela música detonou com o mundo do velho Tom T. Hall. Ele não teria como prever aquilo. Poderia tê-lo mandado para o manicômio. Deus me livre se ele já ouviu alguma das minhas músicas.

"Você entra na sala [You walk into the room]

Com seu lápis na mão [With your pencil in your hand]

Você vê alguém nu"[You see somebody naked]

Você diz, 'Quem é aquele homem?' [You say, "Who is that man?"]

Você se esforça tanto [You try so hard]

Mas não entende [But you don't understand]

O que você vai dizer [Just what you're gonna say]

Quando chegar em casa [When you get home]

Mas você não sabe o que é [But you don't know what it is]

Sabe, senhor Jones? [Do you, Mister Jones?]

Se "Sunday Morning Coming Down" sacudiu a cabeça de Tom, o enviou para o hospício, minha música certamente teria feito com que ele estourasse seus miolos, bem ali no hospício. Espero que ele não tenha ouvido.

Eu acabei de lançar um álbum de clássicos, todas músicas gravadas por Michael Buble, Harry Connick Jr., talvez Brian Wilson tenha gravado duas delas, Linda Ronstadt as gravou. Rod [Stuart], claro, até mesmo Paul [Mccartney] já gravou esse tipo de material. Mas as críticas dos seus discos não são como as dos meus. Em suas críticas, ninguém diz nada. Nas minhas, eles precisam olhar cada detalhe e comentar. Nas críticas que eles recebem, raramente há nomes dos compositores. Diferentemente das minhas. Eles têm que mencionar os nomes de todos os compositores. Bom, está tudo bem pra mim. Afinal, eles são ótimos compositores e estes são clássicos. Já vejo as críticas chegando. Até o meio do texto eles terão mencionado todos os compositores, como se todo mundo os conhecesse. Ninguém ouviu falar deles, não nesta época, pelo menos. Buddy Kaye, Cy Coleman, Carolyn Leigh, para citar alguns.

Mas, sabe, estou feliz que eles mencionem seus nomes, sabe por quê? Fico contente que eles tenham seus nomes na imprensa. Pode ter levado algum tempo para isso acontecer, mas eles finalmente estão aí, com importância e dignidade. Eu só me pergunto por que levou tanto tempo. Apenas sinto que eles não estão aqui para vê-lo.

Rock 'n' roll tradicional, é disso que estamos falando. Trata-se de ritmo. Johnny Cash definiu bem: "Pegue o ritmo. Pegue o ritmo quando aprender o blues." Pouquíssimas bandas de rock 'n' roll atualmente tocam com ritmo. Eles não sabem o que é isso. Rock 'n' roll é uma combinação de blues e é uma coisa esquisita, composta por duas partes. Muita gente não sabe, mas o blues, que é uma música americana, não é o que você pensa é. É uma combinação de violinos árabes e valsas de Strauss trabalhando. Mas é verdade.

A outra metade do rock' n' roll tem de ser caipira. E isso é um termo pejorativo, mas não deveria ser. Esse é um termo que inclui os Delmore Bros., Stanley Bros., Roscoe Holcomb, Git Tanner e os Skillet Lickers... grupos como estes. Moonshine furioso. Carros velozes em estradas de terra. Esse é o tipo de combinação que compõe o rock 'n' roll e não pode ser preparada em um laboratório de ciências ou em um estúdio.

Você tem de ter o tipo certo de ritmo para tocar esse tipo de música. Se você mal sabe tocar blues e não tem uma pegada caipira, você não está mesmo tocando Rock 'n' Roll. Pode ser outra coisa, mas não é rock 'n' roll. Você pode fingir, mas você não pode fazê-lo.

Os críticos disseram que fiz minha carreira contrariando expectativas. Realmente? Por que isso é tudo o que eu faço? É assim que penso sobre esse assunto. Contrariar expectativas. Como se eu ficasse acordado até tarde da noite pensando em como fazer isso. "Como você ganha a vida, cara?" "Ah, eu contrario as expectativas." Você vai procurar um emprego e te perguntam: "O que você faz?" "Ah, você contraria as expectativas... E te dizem: "Bem, essa vaga já foi preenchida. Ligue mais tarde. Ou não ligue, nós ligaremos para você." Contrariar expectativas. Não sei nem o que significa ou quem tem tempo para isso.

Por que comigo, Senhor? Meu trabalho os contraria, obviamente, mas realmente não sei como faço isso.

Os Blackwood Bros. têm falado comigo sobre como fazermos um disco juntos. Isso pode contrariar as expectativas, mas não deveria. Claro que seria um álbum gospel. Não acho que seja nada fora do comum para mim. Nem um pouco. Uma das músicas que estou pensando em cantar é "Stand By Me", com os Blackwood Brothers. Não a música pop "Stand By Me". Não. A "Stand By me" real.

A real é assim:

Quando a tempestade da vida for furiosa / Fique comigo / Quando a tempestade da vida for furiosa / Fique comigo / Quando o mundo estiver me sacudindo / Como um navio no mar / Tu, que reges o vento e água / Fique comigo [When the storm of life is raging / Stand by me / When the storm of life is raging / Stand by me / When the world is tossing me / Like a ship upon the sea / Thou who rulest wind and water / Stand by me]

Em meio a tribulação / Fique comigo / Em meio a tribulação / Fique comigo / Quando os anfitriões do inferno atacarem / E minha força começa a falhar / Tu, que perdeste uma batalha / Fique comigo [In the midst of tribulation / Stand by me / In the midst of tribulation / Stand by me / When the hosts of hell assail / And my strength begins to fail / Thou whomever lost a battle / Stand by me]

Em meio a falhas e fracassos / Fique comigo / Em meio a falhas e fracassos / Fique comigo / Quando eu fizer o melhor que posso / E meus amigos não entenderem / Tu, que sabes tudo sobre mim / Fique comigo [In the midst of faults and failures / Stand by me / In the midst of faults and failures / Stand by me / When I do the best I can / And my friends don't understand/ Thou who knowest all about me / Stand by me]

Esta é a música. Eu gosto mais dela do que da canção pop. Se eu gravar alguma com esse nome, será essa. Também estou pensando em gravar uma música, porém não para esse álbum, uma canção chamada "Oh Lord, Please Don't Let Me Be Misunderstood". Mas não sei, pode cair bem no disco gospel também.

De qualquer forma, estou orgulhoso de estar aqui hoje à noite no MusiCares. Sinto-me honrado de ter todos estes artistas cantando minhas músicas. Não há nada parecido. Grandes artistas. Que sabem cantar a verdade, e você pode ouvi-la em suas vozes. Estou orgulhoso de estar aqui hoje à noite no MusiCares. Prezo muito esta organização. Eles ajudaram muitas pessoas. Vários músicos que contribuíram muito para a nossa cultura. Eu gostaria de agradecê-los pessoalmente pelo que fizeram para um amigo meu, Billy Lee Riley. Um amigo meu que ajudaram durante seis anos, quando ele estava mal e não podia trabalhar. Billy era um artista de rock 'n' roll da [gravadora] Sun.

Ele era verdadeiramente original. Ele fazia de tudo: tocava, cantava e escrevia. Ele teria sido uma estrela ainda maior, mas Jerry Lee apareceu. E, sabe, o que acontece quando surge alguém assim. Você meio que tem de dar um passo para trás. Você simplesmente não tem chance.

Então, Billy tornou-se o que se conhece nesse meio –um termo condescendente, a propósito– como um homem de apenas um sucesso. Mas às vezes, só às vezes, de vez em quando, um homem de apenas um sucesso pode ter um impacto mais poderoso que uma estrela de gravação que tem 20 ou 30 hits por trás dela.

E a canção de sucesso do Billy foi chamada de "Red Hot", e era incandescente. Poderia te fazer explodir para fora de seu crânio e deixá-lo feliz com isso. Mude sua vida. Ele o fez com poder, estilo e graça. Você não vai encontrá-lo no Hall da fama do Rock and Roll. Ele não está lá. O Metallica está. O Abba está. O Mamas and the Papas... eu sei que estão lá. Jefferson Airplane, Alice Cooper, Steely Dan... não tenho nada contra o Metal, Soft Rock, Hard Rock, Pop psicodélico. Não tenho nada contra nenhuma dessas coisas. Mas afinal de contas, chama-se Hall da fama do Rock and Roll. Billy Lee Riley não está lá. Ainda. E está demorando muito.

Eu o via umas duas vezes por ano. Sempre passávamos um tempo juntos, e ele estava num circuito de festivais de nostalgia rockabilly, e nós nos cruzávamos de vez em quando. Sempre passávamos tempo juntos. Ele era meu herói. Eu havia escutado "Red Hot". Eu devia ter apenas 15 ou 16 anos na época e fico impressionado até hoje. Nunca me canso de ouvi-la. Também nunca me cansei de assistir às performances de Billy Lee. Passamos tempo juntos conversando e tocando pela noite adentro. Ele era um homem profundo, verdadeiro. Não era amargo ou nostálgico. Ele simplesmente se aceitava. Ele sabia de onde tinha vindo e ele estava contente com quem ele era.

E, então, um dia ele ficou doente. E como o meu amigo John Mellencamp cantaria –porque John cantou alguma verdade hoje– um dia você adoece e não melhora. Isso veio de uma de suas músicas, chamada "Life is Short Even on Its Longest Days" [A vida é curta até mesmo em seus dias mais longos]. É uma das melhores canções dos últimos anos, na verdade. Não estou mentindo. E não estou mentindo quando digo que o MusiCares pagou pelos gastos médicos do meu amigo, sua hipoteca e deu-lhe dinheiro para gastar. Eles pelo menos conseguiram tornar sua vida confortável, tolerável até o fim. Isso é algo que não pode ser reembolsado. Qualquer organização que fizesse isso teria que ter a minha benção.

Eu vou sair daqui agora. Vou cair fora. Eu provavelmente deixei várias pessoas de fora e falei demasiadamente sobre outras. Mas tudo bem. Como a música espiritual: "Eu também estou apenas atravessando o Jordão". Espero que nos encontremos novamente. Algum dia. E iremos, se, como diz Hank Williams, "o bom Senhor quiser e os Creeks não se rebelarem" [the good Lord willing and the Creek don't rise].

Tradução de JULIANA CALDERARI


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