Um cruzamento de tempos históricos está na base do próximo Panorama da Arte Brasileira. Obras de seis artistas e uma seleção de artefatos arqueológicos de 7.000 anos atrás vão compor esta que promete ser uma das mais radicais encarnações da mostra que chega em outubro à sua 34ª edição no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Depois de dizer que os artistas brasileiros são "em geral desligados, desatentos e despolitizados", a crítica e historiadora Aracy Amaral, que já esteve à frente de uma edição do Panorama há 16 anos, agora assume o comando da mostra com uma seleção de nomes que ela considera "telúricos", ou seja, com uma conexão profunda com a terra.
Nesse sentido, trabalhos de Berna Reale, Cao Guimarães, Cildo Meireles, Erika Verzutti, Miguel Rio Branco e Pitágoras Lopes Gonçalves vão gravitar em torno de 20 a 30 esculturas encontradas em sambaquis, amontoados de conchas erguidos por povos primitivos ao longo do litoral sul do país e em parte da costa uruguaia.
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Artefato de povo sambaqueiro do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, que estará no MAM |
Descontadas as peças de anônimos, que virão de museus de arqueologia e etnologia da região, este será o Panorama com o menor número de artistas em toda a história da mostra, que começou em 1969 com a ideia de ser uma vitrine da arte contemporânea emergente do país.
Amaral, que trabalha ao lado do curador-adjunto Paulo Miyada, tenta estabelecer na mostra uma leitura alternativa da genealogia da criação plástica no país, descartando a aproximação do Brasil com a arte europeia e fundando, de forma alegórica, um novo mito de origem para a identidade artística nacional.
Ela conta que já havia mostrado essas peças, em geral pequenas esculturas em basalto na forma de peixes e aves, numa edição da Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, há quatro anos. Agora, ela retorna aos artefatos, "de um refinamento plástico incrível", para estruturar um diálogo com a produção atual.
"É uma especulação poética sobre o território", diz Amaral. "Busquei artistas que tivessem uma relação com a terra, com essas vivências acumuladas, e com a problemática da memória, da modernidade, da permanência. Temos de refletir sobre o que somos."
Nesse ponto, o projeto à primeira vista ousado de Amaral parece abrir ao mesmo tempo uma brecha para a inclusão de nomes mais politizados -Cildo Meireles e Berna Reale- e artistas que dialogam com o universo naïf -Erika Verzutti e Pitágoras Lopes Gonçalves.
Também está em sintonia com a principal tendência das últimas grandes mostras, da Documenta, em Kassel, na Alemanha, às últimas edições da Bienal de Veneza e da Bienal de São Paulo, que vêm confrontando obras de artistas consagrados com artefatos históricos e indígenas.
"Existe uma contaminação com o popular na obra dos nossos artistas mais avançados", diz Amaral. "É o problema da memória tratado de forma delirante."
Ou "absurda". Na opinião de Miyada, a mostra vai refletir a busca por novas origens da arte do país, trazendo como raiz algo pré-colonial.