Folha de S. Paulo


Franco-brasileiro Hércules Florence tem criações resgatadas por Mônaco

Num de seus manuscritos, Hércules Florence fala das mil frustrações que enfrentou ao tentar fixar as imagens que via tomar forma na câmara escura que construiu. É o relato exasperante de alguém que sente estar muito perto de um milagre tecnológico, mas vê aquilo escorregar pelo ralo.

Essa lembrança de outubro de 1833 tinha como título, em francês, "descoberta da fotografia ou impressão com a luz" —não se sabe se na hora ou tempos depois, Florence rasurou o texto, riscando da página a palavra "descoberta".

Nascido em Nice, em 1804, e morto em Campinas, no interior paulista, em 1879, Florence foi o primeiro a usar o termo fotografia. Mas Louis Daguerre, francês morto aos 63, em 1851, entrou para a história como inventor da técnica, mesmo tendo patenteado o processo seis anos depois.

Essa visão de Florence como um inventor no exílio, uma espécie de gênio incompreendido nos trópicos, orienta a maior mostra já dedicada ao artista marcada para o ano que vem no Novo Museu Nacional de Mônaco.

Há dois anos, pesquisadores bancados pelo governo do principado europeu transcrevem todos os manuscritos de Florence em poder de uma das herdeiras, a tataraneta brasileira Leila Florence, e digitalizam um arquivo de mais de mil obras, entre provas fotográficas, desenhos e esboços de máquinas e invenções frustradas.

Divulgação
Obras de Hercules Florence que estarão em mostra em Mônaco em 2016
Obras de Hercules Florence que estarão em mostra em Mônaco em 2016

É uma tentativa de repatriar Florence como um ilustre –e ainda desconhecido– herói nacional. Mesmo nascido na França, ele era de origem monegasca e tinha um passaporte do pequeno país. "É isso que nos dá o dinheiro para a pesquisa", conta o italiano Cristiano Raimondi, que lidera os estudos orçados em cerca de R$ 1,6 milhão.

No fundo, eles querem fazer o caminho inverso do artista que se radicou no Brasil e criou em solo nacional um projeto intelectual obsessivo, com estudos que vão da topografia à zoofonia, passando pela arquitetura, a meteorologia e as técnicas fotográficas que tentou aperfeiçoar.

Logo depois de desembarcar no porto do Rio, em 1824, Florence se ofereceu para ser um dos desenhistas da célebre expedição Langsdorff, que viajou do rio Tietê ao Amazonas pelo interior do país.

No trajeto, teve um filho com uma índia e fez os primeiros registros de tribos ainda desconhecidas dos brancos, como os bororo. Também viu enlouquecer o líder da expedição e perdeu o colega Adrien Taunay, que morreu afogado.

VISÃO MODERNÍSSIMA

Na opinião de Boris Kossoy, autor do maior estudo já feito sobre Florence, o fracasso da expedição explica em parte a dificuldade de o artista se firmar no panteão intelectual de sua época, além do isolamento em que vivia depois de se casar com a filha de um político graúdo em Campinas.

"Uma das grandes frustrações dele era viver num meio caboclo", diz Kossoy. "Mas o seu interesse maior nem eram as imagens da câmara escura. Ele falava que o espetacular era que a natureza pudesse se desenhar com o rigor da geometria. Ele tentou produzir imagens em série dentro de uma visão moderníssima."

Mas o fato de não ser reconhecido como inventor da fotografia também responde pela multiplicação de seus interesses e sua obsessão em se firmar como o gênio que acreditava ser, copiando e recopiando seus manuscritos à exaustão e enviando os textos a universidades da Europa.

"Ele ficou chocado que na França chegaram a capacidades técnicas muito superiores do que as dele", diz Linda Fregni, artista italiana que também organiza a mostra. "Isso causou uma dor que ele nunca foi capaz de superar."

ROMÂNTICO ILUMINADO

Resignado, Florence também arquitetou o que a autora argentina Pola Oloixarac, que escreveu uma ópera e agora escreve um romance sobre o artista, resume como "cosmovisão de sua sensibilidade".

Ou seja, tentou redefinir parâmetros para a arquitetura, que no Brasil, segundo ele, deveria ser inspirada no crescimento das palmeiras, adaptou a notação musical para encaixar o canto dos pássaros da Amazônia e dividiu a natureza entre os mundos orgânico –tudo o que se mexe– e o inorgânico –plantas e pedras.

"Ele dizia que seria lindo poder reproduzir de forma mecânica tudo que fosse inorgânico, para que os artistas pudessem se concentrar no orgânico", conta Fregni. "Nesse sentido, ele estava entre o romantismo e o iluminismo, entre a arte e a ciência, que era a atitude do momento."

No caso, a atitude na Europa daquele momento. Em Campinas, onde desenvolveu suas pesquisas, Florence se sentia num vácuo intelectual. "Era um homem de cultura, iluminado, mas parecia estar falando árabe. Estava rodeado de gente que não entendia nada", diz Raimondi. "Essa é uma história muito brasileira."


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