Folha de S. Paulo


Série levanta debate sobre limite entre plágio e citação

"Bela homenagem do Fernando Meirelles ao Lars von Trier. Ou seria plágio?", tuitou um internauta que se identifica como Fernando Rufino após a Globo exibir, no dia 26/1, o primeiro capítulo da minissérie "Felizes para Sempre?".

Dirigida por Meirelles, a trama em torno de casais em crise chegou nesta sexta-feira (6) a seu último episódio deixando uma pulga atrás da orelha do espectador mais atento.

Como Rufino, muita gente questionou no Twitter se a cena criada pelo brasileiro, em que uma criança morre por descuido dos pais, poderia caracterizar plágio de um trecho inicial de "Anticristo" (2009).

No filme do diretor dinamarquês, um menino se atira de uma janela enquanto os pais transam. Em "Felizes para Sempre?", um menino cai em uma piscina enquanto os pais dormem. Em ambos os casos, câmera lenta e imagens em preto e branco.

Assim como na minissérie, outros internautas também acusaram plágios em cenas de novelas da Globo como "Avenida Brasil", "Império", "O Astro" e "Geração Brasil" (veja acima).

Em entrevista à Folha, Meirelles afirma que não havia se dado conta da semelhança até ser avisado por uma assistente –o que ocorreu antes das filmagens.

Para evitar cair em uma cópia idêntica, retrabalhou o cenário e a luz, dividiu a cena em duas partes e retirou a morte do garoto do trecho inicial do episódio. "Um visual meio de sonho também distanciaria a cena do estilo mais naturalista do dinamarquês."

No entanto, a associação continuou sendo "óbvia". Então, o diretor resolveu assumir o risco. "'Anticristo' foi visto por apenas algumas mil pessoas no Brasil, e a ideia da cena é tão forte que merecia ser vista por alguns milhões."

O longa de von Trier, exibido no Brasil em 2009, atraiu 73 mil pessoas aos cinemas.

A situação retratada, prossegue o diretor, "não foi inventada por ninguém". "Ela me é especialmente cara pois perdi um irmãozinho quando eu tinha dois anos. Cinquenta e cinco anos depois, o tema ainda é tabu entre meus pais."

TECNOLOGIA

O pesquisador de teledramaturgia brasileira Nilson Xavier, autor do livro "Almanaque da Telenovela Brasileira" e do site "Teledramaturgia", reconhece que essa situação, em que um autor faz menção à obra de outro, tornou-se comum na televisão brasileira.

"Mas não vejo como plágio", diz. "Esses autores sabem que as pessoas vão reconhecer na hora a referência que está sendo feita", explica.

Para Xavier, a reincidência de situações similares na Globo também deriva de uma vontade de mostrar capacidade tecnológica. Desde 2007, quando as novelas da emissora passaram a ser gravadas em alta definição (HDTV), o canal passou a buscar uma qualidade de produção e imagem antes vista só na telona.

"É como se esses autores dissessem 'nós podemos fazer igual'. A televisão tenta se aproximar esteticamente do cinema, também na fotografia e na iluminação", explica.

Para o dramaturgo Zen Salles, que fez parte da equipe de roteiristas da série "Sessão de Terapia", Fernando Meirelles "foi honesto" ao deixar "bem evidente a sua homenagem ao colega dinamarquês".

"Apesar de 'Anticristo' ser um filme recente, a cena em questão já se transformou em um clássico, assim como Norma Desmond descendo as escadas em 'Crepúsculo dos Deuses' e dizendo 'estou pronta para o close', cena já reproduzida na novela 'Duas Caras', de Aguinaldo Silva."

Segundo Thiago Jabur, advogado especializado em direito autoral, "a lei não protege ideias". "O plágio se caracteriza quando a semelhança deixa de ser uma inspiração para ser uma cópia integral ou maquiada."

CAIXA DE BOMBONS

O recurso é comum também no cinema. Em uma cena de "Kill Bill: Vol. 2" (2004), de Quentin Tarantino, por exemplo, a protagonista vivida por Uma Thurman é enterrada viva, uma referência aos filmes de terror como "O Silêncio do Lago" (1988), do francês George Sluizer, e o clássico "Carrie, a Estranha" (1976), de Brian de Palma.

Se as novelas "Império", atualmente no ar, e "Avenida Brasil" (2012) resgataram a mesmíssima cena recriada por Tarantino, elas estão, na opinião de Meirelles, demonstrando "como funciona a dinâmica da cultura" ou representando uma "maneira de a sociedade ruminar e deglutir suas próprias imagens e mitos", diz.

Ele promete bombons a quem conseguir lhe mostrar uma cena "100% original".


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