Folha de S. Paulo


'Felizes para Sempre?' constrói arquitetura de pequenas mentiras

Um voo sobre Brasília atravessa os ângulos estonteantes da arquitetura de Oscar Niemeyer. São rampas, cúpulas e curvas que emolduram um horizonte avassalador. Em "Felizes para Sempre?", minissérie que acaba de estrear na TV Globo, o diretor Fernando Meirelles faz da capital federal um cenário etéreo para uma trama de casais infelizes.

Sua verve publicitária transparece mais do que nunca, talvez até mais do que em "Ensaio sobre a Cegueira" e "360", filmes em que cada cena se torna menos um ponto chave para o enredo e mais um exercício estetizante, de objetos fetiche, planos de luz saturada e atores e atrizes fotografados, eles também, como arquiteturas móveis.

No caso da nova série, Brasília é também um cenário de corrupção e adultério. Nesse sentido, o signo da utopia sonhada por Niemeyer e Lúcio Costa contrasta com a lamaceira de tramoias na política e de traição entre os casais.

Meirelles, guiado pelo roteiro até aqui correto de Euclydes Marinho, constrói sobre Brasília uma segunda pele, um tanto conspurcada, erodida. Em tudo está implícito um embate entre a beleza comprada a qualquer custo e toda uma arquitetura de pequenas mentiras.

Zé Paulo Cardeal/Globo
João Miguel e Adriana Esteves em 'Felizes para Sempre?', série de Euclydes Marinho, na Globo
João Miguel e Adriana Esteves em cena de 'Felizes para Sempre?', série de Euclydes Marinho, na Globo

Enrique Diaz, excelente na pele do empreiteiro Cláudio, divide seu tempo entre superfaturar obras do governo e transar com belas mulheres –Paolla Oliveira surpreende como a prostituta Danny Bond–, ao mesmo tempo em que sente um estranho prazer em comprar obras de arte. Sua casa, de ângulos retos e paredes envidraçadas, é um pequeno museu.

Adriana Esteves, numa atuação mais contida e matizada do que sua histérica Carminha de "Avenida Brasil", vive uma cirurgiã plástica que parece tratar seus próprios relacionamentos com precisão cirúrgica, cortando excessos, corrigindo falhas, evitando desvios.

Em cena, os casais de "Felizes para Sempre?" parecem engajados num esforço desesperado de manter as convenções em tempos de distrações tentadoras demais, configurando um espelho do amor atravessado por aplicativos de paquera. Não à toa, Cláudio, quando transa com a própria mulher, vivida aqui por Maria Fernanda Cândido, não consegue ir além da ejaculação precoce.

Essa sensação de gozar antes da hora, ou de queimar a largada, delineia todas as cenas, num estranho paralelo com o Brasil do futuro erguido em volteios de ficção científica no coração do cerrado.

Em certos aspectos, a minissérie não passa das convenções de um drama televisivo, com exceção da fotografia luxuosa de Meirelles e uma direção de arte impecável, mas se firma como uma das produções mais interessantes da história recente da TV brasileira.

Interessante porque foge do melodrama, pelo menos nos dois primeiros episódios, e se aproxima de um registro mais contido. Tenta traçar um retrato, mesmo que às vezes caricato, dos donos do poder, satisfazendo lamúrias de quem sente falta de ver no Brasil menos "favela movies" e mais dramas da classe média que sofre.

Também porque consolida nesse horário das 23h, depois de todas as bobagens do horário em que a briga pela audiência na TV aberta ainda é uma questão de sangue nos olhos, uma faixa de experimentações bem-vindas –da excelente "Amores Roubados" à beleza formal de "O Rebu", ambas de José Luiz Villamarim.

No fundo, a surpresa de "Felizes para Sempre?" não se divorcia da força visual de Brasília. Não a capital planejada sob o signo do delírio, mas um descampado triste que virou a chapa quente do poder e do desejo, ou melhor, da ganância e da luxúria.


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