Folha de S. Paulo


Documentário exibe cenas do Holocausto escondidas desde 1945

Uma pilha com dezenas de corpos esquálidos, retorcidos, atirados num descampado. "Mulheres que são como estátuas de mármore na lama", diz o narrador enquanto imagens de judeus assassinados em campos de extermínio passam pela tela.

Durante 70 anos, essas cenas, registradas por soldados britânicos, soviéticos e americanos na Segunda Guerra, ficaram confinadas por serem "chocantes demais". Lançado no final do ano passado, o documentário inglês "Night Will Fall" (a noite vai cair) recupera a história desses registros.

"A nossa missão era botar todas essas imagens em contexto", contou à Folha, nesta segunda (26), o diretor e antropólogo inglês André Singer, que compilou 12 minutos das cenas originais em seu filme de 75 minutos. O documentário traz depoimentos de judeus sobreviventes e de ex-militares que filmaram as cenas.

Divulgação
Soldado aliado filma em campo de concentração nazista em 1945
Soldado aliado filma em campo de concentração nazista em 1945

Produtor de outro filme sobre genocídio, "O Ato de Matar" (2012), que disseca a ditadura indonésia, Singer soube que o Imperial War Museum, na Inglaterra, restaurava rolos engavetados de imagens feitas por soldados durante a Segunda Guerra.

Em 1945, enquanto as tropas dos Aliados avançavam sobre a Alemanha, o governo britânico incumbiu parte dos seus soldados de registrar imagens de campos de concentração e extermínio de judeus para um documentário que comprovasse os crimes cometidos pelos nazistas.

Membro do Ministério da Informação do Reino Unido, Sidney Bernstein reuniu uma equipe que incluiu o diretor Alfred Hitchcock como supervisor artístico do documentário "German Concentration Camps Factual Survey" (pesquisa factual sobre campos de concentração alemães). Bernstein também incluiu cenas rodadas por tropas americanas e soviéticas em 11 campos.

ENGAVETADO

Nesta terça (27), completam-se 70 anos da libertação, pelo Exército Vermelho, de Auschwitz, rede de campos de concentração nazistas no sul da Polônia. O local, onde estima-se que mais de 1 milhão de judeus foram assassinados, também aparece no documentário.

Atrás dos arames farpados do campo de Bergen-Belsen, no norte da Alemanha, crianças judias espreitam com um misto de esperança e desconfiança a chegada dos Aliados. Algumas delas foram reencontradas por Singer. "Para nós, os soldados ingleses pareciam deuses", diz uma das sobreviventes, já idosa.

Um ex-soldado inglês chora ao lembrar das valas entupidas de corpos de prisioneiros: "Não eram milhares, eram dezenas de milhares, de bebês, velhos, jovens, homens, mulheres". Outro, russo, comenta os enormes crematórios, "usados até pouco tempo antes de chegarmos ali".

Parte do material de "German Concentration Camps" acabou sendo usada nos julgamentos dos oficiais nazistas, mas o filme nunca saiu. À época, com a rivalidade com a URSS ganhando força, o governo inglês optou por não estremecer as relações com os alemães, tidos como aliados estratégicos na Guerra Fria.

"Não acho que estavam escondendo as imagens", diz Singer. "O que não se queria é que o movimento sionista ganhasse mais simpatizantes."

Segundo ele, parte do governo britânico temia que as imagens chocantes insuflassem a criação do Estado de Israel em território palestino, então gerido pelo Reino Unido.

"O filme teve um timing ruim", diz Singer. Até sua morte, em 1993, Bernstein ainda tinha esperanças de lançá-lo, conta o diretor de "Night Will Fall". Hoje, contudo, ainda que restaurado, o rolo original dificilmente será exibido fora de eventos especiais, opina. "Estão avaliando o que fazer, mas as imagens, além de antigas, são realmente horrorosas."

Segundo Singer, a Globo comprou os direitos para exibição de "Night Will Fall", provavelmente nos canais a cabo. A reportagem entrou em contato com a emissora, mas não teve resposta até a conclusão desta edição.


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