Folha de S. Paulo


Crítica: Ridley Scott subverte lógica bíblica em 'Êxodo'

Ridley Scott resolveu caminhar no fio da navalha ao criar sua versão da saga de Moisés.

Em "Êxodo: Deuses e Reis", o cineasta britânico procura conservar, na maior parte do tempo, a ambiguidade a respeito dos acontecimentos: até que ponto o que ocorre é resultado da intervenção divina ou tem causas mais mundanas, naturais ou derivadas da ação humana?

Trata-se de uma escolha arriscada, inclusive do ponto de vista mercadológico, já que é razoável esperar que grande parte do público-alvo do épico seja formado por quem deseja ver confirmada a narrativa tradicional da Bíblia —gente que quer uma profissão de fé cinematográfica, digamos.

E, nesse ponto, o texto bíblico não é nada ambíguo. Como escreve o crítico literário (e ex-jesuíta) norte-americano Jack Miles, "o Êxodo não é nem uma vitória israelita, nem uma derrota egípcia. Do começo ao fim, o Êxodo é um ato de Deus".

Scott subverte essa lógica ao retratar Moisés, ao menos inicialmente, como uma espécie de cético —um sujeito que ridiculariza os rituais pagãos da corte egípcia na qual foi criado e, ao mesmo tempo, conforme vai redescobrindo suas raízes israelitas, critica o que enxerga como o fanatismo da fé no Deus único de Abraão.

O filme, aliás, não se contenta em deixar a ação nas mãos divinas mesmo depois que Moisés se convence de que o Senhor o escolheu para libertar o povo de Israel.

PARALELOS

Antes general do faraó, o profeta passa a usar sua experiência militar (outra inovação de Scott) para transformar os escravos israelitas em guerrilheiros e terroristas —decerto uma tentativa, não muito bem-sucedida, de traçar paralelos entre a situação atual do Oriente Médio e a longínqua Idade do Bronze na qual se passa a ação.

O curioso é que essa ambiguidade acaba sendo abandonada. O fracasso da estratégia guerrilheira de Moisés faz com que Deus lance as célebres dez pragas sobre o Egito.

Embora a primeira delas até tenha uma possibilidade de explicação natural —o Nilo se transforma em sangue graças a ataques de crocodilos-, o ritmo crescente de desastres é tão avassalador que se torna ridículo negar a ação divina.

É graças a essa escalada de destruição, em parte, que o filme ganha força. Mas não propriamente pelo espetáculo das pragas. Embora os desastres abram caminho para a liberdade de seu povo, Moisés não deixa de questionar Deus: até que ponto séculos de escravidão devem ser punidos de um jeito que afeta principalmente os inocentes?

Tal tensão entre justiça e misericórdia é um dos grandes dilemas da tradição bíblica, e o filme, apesar de suas falhas, acerta ao revisitá-la.

ÊXODO: DEUSES E REIS
DIREÇÃO Ridley Scott
ELENCO Christian Bale, Joel Edgerton, Ben Kingsley
PRODUÇÃO EUA/Espanha/Reino Unido, 2014, 12 anos
AVALIAÇÃO bom

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