Folha de S. Paulo


Em 'Funny Girl', Nick Hornby revisita Londres dos 1960

Há uma cena em "Funny Girl", o novo romance de Nick Hornby, que parece iluminar muito do que esse autor de ficção, memórias, ensaios e roteiros tem a dizer.

A cena transcorre nos anos 60. "Pipe Smoke" é um programa de debate tão tedioso que Dennis, um dos convidados, imagina se o objetivo é "convencer os trabalhadores britânicos a dormir mais do que estão dormindo".

Dennis é o produtor de "Barbara (and Jim)", a bem-sucedida série de humor que serve de propulsor à trama do romance, e foi chamado para defender seu trabalho contra o pedante acadêmico Vernon Whitfield, cuja principal objeção à série é que ela seja imensamente popular.

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Atriz americana Lucille Ball, que inspira protagonista do romance de Hornby
Atriz americana Lucille Ball, que inspira protagonista do romance de Hornby

Enquanto os dois se encaram com hostilidade nos bastidores, Dennis pergunta a Whitfield: "Você não gosta de pessoas comuns?" Whitfield responde: "Gosto de pessoas comuns individualmente, mas em massa elas me incomodam". E, prossegue, "onde vamos parar, assim? A BBC está repleta de corridas de cavalo e programas de variedades e grupos pop que parecem homens das cavernas e cantam como eles. Como as coisas vão ficar dentro de dez anos? Ou 50?".

É uma cena muito engraçada, cujo clímax mostra Dennis, a quem àquela altura já amamos, acusando Whitfield, a quem já desprezamos, de ser partidário camuflado da eugenia –e isso ao vivo. Mas, como diz Hornby, "algumas das coisas que Vernon diz estão certas".

"Nós na verdade terminamos assistindo a cenas com gente sentada na privada. Não quero que ele tenha razão, e ainda acredito que esteja errado sobre muito do que diz. Ele errou espetacularmente quanto à linha do tempo, mas mesmo assim foi bastante presciente".

Os gostos culturais de Hornby abarcam livros, filmes, TV, música e esportes –não apenas no senso de que ele gosta de tudo isso, mas no que ele rejeita uma visão de mundo que fixa cada uma dessas coisas em uma hierarquia de importância e valor.

Ele lembra uma recente palestra que fez, na qual declarou que as pessoas deveriam largar no meio os livros de que não gostam.

O que o preocupa acima de tudo é que a atitude de persistir a todo custo "reforça a ideia de que ler é um dever, e as pessoas sempre tenderão mais a ver TV do que a ler um livro, se o livro que estiverem lendo for chato e arrastado e o programa for bacana".

Hornby contornou esse problema, de muitas maneiras, ao garantir que seus livros jamais sejam arrastados e chatos, mesmo que tratem de assuntos difíceis.

PASSADO

"Febre de Bola", suas memórias, de fenomenal sucesso de vendas, sobre as (poucas) alegrias e (enormes) tristezas de torcer pelo Arsenal, saiu 21 anos atrás.

O primeiro romance de Hornby, "Alta Fidelidade", saiu em 1995 e propiciou, para os donos de lojas de disco infelizes no amor, uma transformação parecida com a que "Febre de Bola" causou quanto aos torcedores de futebol.

Depois vieram "Um Grande Garoto", "Como Ser Legal", "Uma Longa Queda" e "Juliet, Nua e Crua".

Agora é a vez de "Funny Girl" (no Brasil, deve sair pela Companhia das Letras em março, ainda sem título definido). É o primeiro romance de Hornby, 57, que se passa no passado.

O livro narra o rápido avanço de Barbara, que vence um concurso de beleza em sua cidade de origem, Blackpool, foge para Londres quando percebe que talvez tenha de posar de maiô e faixa de miss pelo resto da vida se não tomar alguma providência, e tenta se reinventar como a resposta britânica à sua heroína da comédia nos Estados Unidos, Lucille Ball.

Depois de uma breve passagem como balconista, ela encontra o sucesso, muda seu nome para Sophie, se torna parte de uma série de comédia sobre a vida de um casal e domina o programa a tal ponto que o nome de seu marido no título passa a ser grafado entre parênteses.

A heroína surgiu quando Hornby começou a imaginar por que não havia surgido uma Lucille Ball britânica. Ele acredita que provavelmente porque as mulheres não tinham muito a fazer nas séries de humor britânicas.

"Mesmo em algo como o Monty Python, a pobre menina só ficava lá de biquíni na maior parte do tempo. Comédia era um clube só para rapazes. Por isso, eu quis colocar um personagem de ficção nesse espaço vazio".

TRAJETÓRIA FEMININA

Seus romances mais recentes mostram forte atração por narrativas femininas, desde "Como Ser Legal", romance que John Carey, crítico de literatura do "Sunday Times", memoravelmente comparou a Dostoiévski. Nele, a narradora é Katie Carr, uma médica em crise.

"Muitas vezes me parece que a jornada das jovens mulheres é mais comovente, porque elas vivem mais pressionadas, e é mais interessante dramaticamente escrever e pensar sobre pessoas cujas vidas são circunscritas de alguma maneira".

Ele se mostra especialmente divertido ao responder à velha pergunta sobre o "homem escrevendo do ponto de vista de uma mulher".

Falando sobre "Livre" (2014), filme de drama protagonizado por Reese Witherspoon, baseado em história real, contada em livro de memórias da americana Cheryl Strayed, para o qual fez o roteiro, diz que as pessoas não paravam de perguntar como tinha conseguido entrar na cabeça de uma mulher.

"E eu ficava pensando, bem, foi uma mulher que escreveu o maldito livro. É um livro de memórias'. Seria a mesma coisa que perguntar como uma pessoa faz para entrar na cozinha. É a pergunta errada a fazer. O que importa é o que ela faz ao entrar na cozinha. Como dramatizar essa ação? Que decisões você toma para que o texto se torne filme?", questiona.

"Mas essa história de querer saber como consegui entrar na cabeça de uma mulher, quando se trata de uma mulher muito articulada e que descreveu perfeitamente bem o conteúdo de sua cabeça –é bem esquisito."

"O ponto é que eu nunca tentaria –nem teria como– uma caminhada de 1,6 mil quilômetros. Ela teve essa experiência em meu benefício, podemos dizer, e tive a chance de escrever sobre isso sentado em casa."

Em, "Livre", a protagonista, Strayed/Witherspoon, mal consegue levantar a mochila, sobrevive com comida crua e desidratada, improvisa sapatos de fita adesiva e enfrenta uma cascavel.

FUTURO

A vida em Upper Street, Islington, onde Hornby mora, é sem dúvida muito mais fácil. Mas Hornby não é indolente. Ele tem contratos para roteiros pelos próximos dois anos, um dos quais para uma versão televisiva das memórias epistolares de Nina Stibbe sobre a vida entre os intelectuais de North London, "Love, Nina". Sugiro que ele certamente não precisa se dedicar tanto assim ao trabalho.

"Sim, mas me parece que agora é a hora. Sinto que aprendi muito que desejo usar, e as propostas são realmente interessantes. E não tenho ideia de se ainda me oferecerão coisas assim dentro de dez anos, ou se terei a capacidade para isso dentro de dez anos –além disso, para ser franco, estou aqui para trabalhar, não?"

FUNNY GIRL
AUTOR Nick Hornby
EDITORA Viking UK
QUANTO R$ 80 (256 págs.); importado


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