Folha de S. Paulo


Criador de obra marcante da Bienal participou de luta armada nos anos 70

Enquanto a 31ª Bienal de São Paulo se aproxima do fim, neste domingo (7), uma série de imagens retorna constantemente à memória.

É difícil imaginar que os imensos e perturbadores retratos de Éder Oliveira sejam facilmente esquecidos; ou a visão do Templo de Salomão, de Yael Bartana, despencando em pó enquanto São Paulo segue de pé, impassível, em torno dele.

E, com suas imagens surrealmente poderosas e fervilhante "radicalismo chique", a coleção de pôsteres da dupla Ines Doujak, austríaca, e John Barker, britânico -parte da instalação "Loomshuttles/Warpaths" (Lançadeiras de tear/Trilhas de guerra)-, também ficará na cabeça de muitos visitantes, cristalizando as preocupações desta Bienal -colonialismo e imperialismo, rebelião e resistência.

Uma escultura de papier mâché de Doujak e Barker, "Haute Couture 04 Transport", retrata um pastor alemão penetrando a última líder trabalhista e feminista boliviana, Domitila Barrios de Chúngara, que por sua vez faz o mesmo com Juan Carlos. O ex-rei espanhol vomita flores sobre um chão de capacetes enferrujados de oficiais da SS nazista. Uma parede e um aviso foram incorporados à instalação em outubro, para esconder a escultura de menores de 18 anos.

"É uma representação visceral das formas de exploração", disse Doujak. "Joga com as relações de poder e as subverte."

Duas mulheres dos altiplanos, usando chapéus-coco, encaram o espectador combativamente do pôster "Twill", enquanto "Velvet" retrata uma figura insurreta envolta em gás lacrimogêneo, usando uma touca de lã ubuku, peruana —versão sul-americana original das máscaras em estilo Anonymous. Outro pôster, um dos dois produzidos no Brasil como resultado da residência de Doujak e Barber aqui, mostra um ativista do MTST diante da prefeitura de São Paulo.

Reinaldo Canato/UOL
Escultura ‘'Haute Couture 04 Transport’', de John Barker e Ines Doujak, exposta na 31ª Bienal de Arte de São Paulo
Escultura 'Haute Couture 04 Transport', de John Barker e Ines Doujak, exposta na 31ª Bienal de SP

ATENTADOS A BOMBA

A insurgência está no ar; e para um dos artistas envolvidos em "Loomshuttles/Warpaths", ela vem do passado distante, também.

Quando jovem, na Londres dos anos 1970, John Barker, 66, foi membro da Angry Brigade —um grupo comunista armado que executou pelo menos 19 atentados a bomba, e outras seis tentativas de atentado no Reino Unido, entre 1970 e 1971.

Os alvos incluíam delegacias de polícia, um centro do Exército Territorial, casas de ministros do governo e a embaixada da Espanha, que eles atacaram com tiros de metralhadora em dezembro de 1970.

O grupo realizou atentados com explosivos contra uma fábrica da Ford e contra a casa do presidente do conselho da montadora, e também atacou diversos bancos e um veículo da BBC que estava trabalhando na cobertura do concurso de Miss Mundo.

Chegaram até a bombardear a butique Biba, em Kensington High Street, o coração da "Swinging London". Um dos comunicados divulgados pela Angry Brigade depois desses ataques dizia: "Se você não está ocupado nascendo, está ocupado comprando. Irmãos e Irmãs, quais são seus reais desejos? Não se pode reformar o capitalismo de lucro e a desumanidade. É preciso chutá-lo até que quebre".

Disposto a falar, em companhia de Ines Doujak, sobre as peças expostas na Bienal, Barker no entanto preferiu não ser entrevistado sobre seu passado radical com relação a "Loomshuttles/Warpaths", escrevendo em um e-mail à Folha que "as obras serão julgadas, e devem ser julgadas, pelos seus méritos".

O Reino Unido no começo dos anos 70 estava fervilhando com greves, protestos e inquietação política, sob o governo conservador do primeiro-ministro Edward Heath. A esperança da Angry Brigade era ajudar a intensificar essas tensões pelo uso de violência revolucionária em modo espetacular.

Apenas uma pessoa saiu ferida como resultado de sua campanha de atentados com explosivos: Elizabeth Wilson, empregada de um vizinho de John Davies, então ministro do Comércio e Indústria. Wilson entrou no edifício momentos antes que explodisse a bomba, disfarçada em presente para Davies, e sofreu ferimentos nas pernas.

No prefácio de "The Angry Brigade: A History of Britain's First Urban Guerrilla Group", o livro de Gordon Carr sobre a organização, Stuart Christie, suposto membro do grupo que ainda assim terminou absolvido em um julgamento, escreve que "seus métodos, efetivos ou não, certos ou errados, davam voz a uma consciência social, e expressão a um importante impulso libertário em um momento em que havia a sensação de que imensas mudanças sociais ainda eram possíveis".

Em 12 de janeiro de 1971, uma manifestação contra a Lei de Relações Industriais, que tinha por objetivo restringir a influência dos poderosos sindicatos britânicos, levou milhares de pessoas às ruas de Londres em protesto. Naquela noite, a Angry Brigade detonou duas bombas na casa de Robert Carr, o ministro de Emprego no governo. O atentado contra Carr fez do grupo mais que nunca alvo da Scotland Yard, em uma investigação que resultou na formação do Esquadrão Antibombas, hoje conhecido como Comando de Combate ao Terrorismo.

Os planos da Angry Brigade começaram a degringolar quando uma trapaça envolvendo cheques forjados, usados para financiar suas atividades, foi descoberta, levando à detenção e julgamento de dois supostos membros do grupo, no começo de 1971.

Em agosto daquele ano, John Barker e sete outras pessoas foram detidos em Londres, e acusados de "conspirar para causar explosões capazes de colocar vidas em risco ou causar danos sérios a propriedades". As provas apresentadas contra a Angry Brigade em Old Bailey, o mais alto tribunal criminal de Londres, incluíam o explosivo gelignite e detonadores, bem como armas, munições e uma rotativa usada para produzir muitos dos comunicados distribuídos pelo grupo.

Em dezembro de 1972, depois de seis meses de julgamento, Barker, James Greenfield, Anna Mendelssohn e Hilary Crick foram considerados culpados e sentenciados a 10 anos de prisão cada, classificados como prisioneiros de categoria A —ameaça à segurança nacional.

"No meu caso, eles condenaram com falsas provas um homem culpado", escreveu Barker sobre sua condenação em "Bending the Bars", suas memórias carcerárias, publicadas em 2006. Ele voltou a servir uma sentença de prisão nos anos 90, quando foi condenado por sua participação em uma grande operação de contrabando de maconha.

Em uma entrevista concedida ao "Guardian" em junho de 2014, quando lançou "Futures", um romance policial no qual o tráfico de cocaína é o eixo que conecta um elenco de personagens londrinos.

Barker diz que contempla seus anos na Angry Brigade com "respeito crítico" pela dedicação e pela raiva do grupo —"que eu ainda sinto, talvez ainda mais intensamente". Quanto à opção pela luta armada, ele declarou à "East End Review", também em junho, que "não é uma questão moral, certo? O que importa é definir se essa decisão serviu a alguma coisa estrategicamente. Sou completamente contra o terrorismo na forma pela qual compreendo o termo, ou seja, matança indiscriminada. É evidente que você não quer machucar pessoas".

Como o grupo Weathermen, dos Estados Unidos, mas em contraste com o grupo Baader Meinhof/Fração do Exército Vermelho, na Alemanha, e as Brigate Rosse italianas, responsáveis respectivamente por 34 e quase 50 mortes, ao que se sabe, a Angry Brigade tomava cuidado para não causar ferimentos a pessoas.

BIENAL

Questionado sobre como Doujak e Barker vieram a participar da Bienal, o curador britânico Charles Esche disse que o trabalho que Doujak vem produzindo ao longo da última década se enquadrava nas preocupações dos curadores. "Ou seja, as relações entre colonizadores e colonizados; entre culturas indígenas e coloniais.

Os curadores estavam cientes do passado de Barker quando o convidaram para a Bienal? "Não o conhecíamos até que descobrimos seu trabalho como parceiro de Ines em 'Loomshuttles/Warpaths', mas ficamos sabendo, então", disse Esche.

E isso fez alguma diferença? "Não creio que precisasse 'fazer diferença' em nenhum sentido concreto", disse. "Deveria haver consequências do fato de que ele serviu uma sentença de prisão por ações realizadas 40 anos atrás?".

Esche mencionou a presidente Dilma Rousseff. "Importa que Dilma tenha optado pela luta armada, no contexto de uma ditadura militar?" Ele menciona Menachem Begin, antigo militante do movimento nacionalista sionista Irgun contra o domínio britânico da Palestina, que em 1977 se tornou primeiro-ministro de Israel.

Esche também menciona Gerry Adams, um dos supostso líderes do Exército Republicano Irlandês (IRA) e hoje presidente do Sinn Féin, partido político da Irlanda do Norte que surgiu inicialmente como ala política do IRA. Para a Angry Brigade, ainda que a organização não tivesse conexão direta com o movimento republicano irlandês, um dos gatilhos de sua campanha de violência foram os chamados "Troubles", o período de conflito armado que tomou a Irlanda do Norte de 1968 a 1998.

Em agosto de 1971, o exército britânico deteve 342 civis na Irlanda do Norte, encarcerando-os sem julgamento, em um ato que provocou indignação generalizada. A resposta da Angry Brigade a essa prisão em massa foi bombardear o centro do Exército Territorial [a organização de reserva do exército britânico] em Holloway, no que seria o último ataque do grupo antes da detenção de seus membros.

Embora armados e perigosos, os membros da Angry Brigade eram café pequeno se comparados à onda real de violência e atentados com explosivos que estava a ponto de ser deflagrada no Reino Unido, já que a campanha de atentados a bomba do IRA, iniciada em 1968, ganhou impulso no começo dos anos 70. Quando começou o processo de paz de 1994, o IRA havia matado mais de 1,7 mil pessoas, entre as quais 644 civis.

"As ações da Angry Brigade", escreveu Barker, aconteceram "antes que o IRA fizesse dos atentados a bomba assunto sério". Em 1973, uma bomba do IRA foi detonada no tribunal de Old Bailey. "Eu estava [na prisão de Wormwood Scrubs] quando a bomba explodiu em Old Bailey", escreveu Barker em uma resenha sobre "Anarchy in the UK", uma história da Angry Brigade. "A penitenciária inteira celebrou, e fiquei aliviado por já ter sido sentenciado. Os atentados se tornaram muito mais pesados, e teríamos recebido sentenças mais pesadas".

Veja a versão em inglês no blog "From Brazil"


Tradução de PAULO MIGLIACCI


CLAIRE RIGBY é jornalista e colaboradora do blog da Folha From Brazil


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