Folha de S. Paulo


Obras criam verdades imprecisas a partir da realidade

É permissível que um dramaturgo ou cineasta altere uma história com finalidade artística? E o que dizer do poder inerente das artes para explorar as emoções internas de seus personagens, especialmente dos vilões, como os personagens-títulos da ópera "Macbeth", de Verdi, de "Lady Macbeth de Mtsensk", de Shostakovich, ou dos terroristas em "The Death of Klinghoffer", ópera do compositor John Adams e da libretista Alice Goodman?

Um artista pode considerar que lançar um novo olhar sobre um fato histórico permitirá uma compreensão mais profunda do que aconteceu. Há exemplos menos delicados a considerar que "Klinghoffer", baseada no assassinato de um deficiente físico judeu em um navio de cruzeiro sequestrado pela Frente de Libertação da Palestina. Um plano para transmitir a ópera em cinemas dos Estados Unidos foi cancelado após protestos de que a obra seria antissemita.

Outras interpretações artísticas não retratam com fidelidade o que de fato aconteceu. É o caso do filme de David Fincher "A Rede Social" (2010), com roteiro adaptado por Aaron Sorkin, sobre a fundação do Facebook.

Jesse Eisenberg representa o jovem e arrogante Mark Zuckerberg, que fundou o que viria a se tornar o Facebook quando era estudante de Harvard. Sem saber ao certo como reagir ao filme, num primeiro momento Zuckerberg deu entrevistas em que falou do que considerou ser suas distorções. Ele rejeitava a mensagem implícita de que seu trabalho teria sido movido pelo desejo de impressionar uma mulher que o tinha rejeitado. Mas não repudiou o filme por completo, apesar de dizer que não se recordava de ter ido a todas as festas mostradas na tela. Aaron Sorkin disse que tomou liberdades porque era mais importante mostrar o éthos de uma nova geração que acertar os detalhes precisos sobre Zuckerberg.

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Mark Zuckerberg, interpretado pelo ator norte-americano Jesse Eisenberg, em cena do filme 'A Rede Social
Mark Zuckerberg, interpretado pelo ator norte-americano Jesse Eisenberg, em cena de 'A Rede Social'

Outro exemplo é o drama "O Informante" (1999), de Michael Mann, sobre o programa de TV "60 Minutes", da CBS, e o tratamento que deu a Jeffrey Wigand, antigo executivo de uma empresa de cigarros. Wigand estava disposto a revelar que a empresa tinha manipulado seu produto para elevar o teor de nicotina, que causa dependência. De acordo com o filme, o produtor do segmento foi forçado pela rede de TV a enxugar a matéria quando ela foi ao ar, cortando a entrevista com Wigand. O apresentador de "60 Minutes" Mike Wallace ficou furioso com o modo como foi retratado no filme.

Críticos de cinema que elogiaram "O Informante" tiveram que levar em conta que a história, conforme retratada no filme, não foi um relato inteiramente justo do que aconteceu. Em sua resenha no "NYT", Janet Maslin escreveu que um filme sobre a importância de expor a verdade pareceu ter manipulado os fatos.

Mark-Anthony Turnage e Richard Thomas fizeram uma ópera sobre a modelo americana, atriz e "Playmate do Ano" Anna Nicole Smith. A obra a retrata como uma jovem texana resoluta que usou seus dotes para subir na vida e virar uma personalidade conhecida, apenas para ser esmagada pelo sistema e morrer de maneira trágica.

A ópera "Two Boys", de Nico Muhly, gira em torno de um incidente verídico em que um garoto de 16 anos na Inglaterra quase matou outro garoto, dizendo ter sido encorajado por vozes misteriosas que ouvia numa sala de bate-papo na internet. Os fatos reais são alterados nessa versão semificcional, mas Muhly se esforça para usar a mídia da ópera para discernir o que o investigador principal do caso buscava: o que teria levado o adolescente a fazer o que fez?

E há a primeira colaboração entre John Adams e Alice Goodman, "Nixon in China" (1987), baseada na viagem do presidente americano Richard Nixon à China em 1972. Naturalmente, cenas inteiras são inventadas. Mas a obra mostra fielmente o propósito e a importância daquela viagem histórica.

Poucos fariam objeções a distorções em um filme como "A Rede Social". Mas, para muitos, criar uma obra de ficção sobre um acontecimento doloroso como o assassinato de Leon Klinghoffer é muito diferente.
A ópera foi criticada por ter distorcido aspectos do que aconteceu e da história do conflito israelo-palestino. E ela dá voz aos sequestradores que atiraram Klinghoffer no mar, preso a sua cadeira de rodas, e aterrorizaram outros reféns.

"Klinghoffer" procura tecer reflexões sobre um conflito aparentemente interminável e sobre o que teria motivado os terroristas, sem explicar seus atos de qualquer maneira, muito menos desculpá-los. Com seu poder misterioso e inato, a música tem condições singulares de contribuir para esse esforço, especialmente a música tão inspirada quanto a de John Adams, misteriosa, profunda e elegíaca.


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