Folha de S. Paulo


Saiba por que obras de Ron Mueck têm semelhança com gente de verdade

Faltava só o brilho nos olhos. "Ele ainda está meio morto", dizia Charlie Clark, assistente do artista Ron Mueck, observando sua escultura de um homenzinho pelado num barco. "Quando ajustarmos a luz, você vai notar como cintilam os olhos dele."

De fato, as esculturas desse australiano espantam pela semelhança acachapante com pessoas de carne e osso. Não fosse a escala agigantada ou reduzida, cada uma das nove obras agora na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, poderiam ser confundidas com gente que respira e sangra.

Essas esculturas, que já levaram 700 mil pessoas à Fundação Cartier, em Paris, à Fundação Proa, em Buenos Aires, e ao Museu de Arte Moderna do Rio causam sempre o mesmo efeito —um silêncio estupefato do público seguido de uma avalanche de selfies deslumbradas diante das obras.

Mueck não dá entrevistas, mas deixa que homens, mulheres, bebês e até frangos depenados que constrói falem pelos próprios poros.

Em São Paulo, Clark, "fiel escudeiro" do artista, é o único que pode tocar nas peças. Enquanto limpava uma delas com uma bolinha de algodão, ia explicando como é feita. Primeiro são moldadas em argila, depois fundidas em silicone a partir de um molde e, por último, têm os cabelos e os olhos implantados, além de ganhar roupas e acessórios.

"Eles precisam ser esculpidos sem roupas ou os cabelos", diz Clark. "Então é como um salto da imaginação."

Ele gosta, aliás, de dizer que tudo começa com um monte de argila. E que Mueck, que tem o "dom do escultor", vai moldando à mão suas figuras, sempre pensando na forma final que ganharão.

Uma vez feito o molde, nele são despejadas camadas sucessivas de silicone semitransparente, sendo que por último, ou seja, por trás de tudo, vem uma camada "cor de marfim", nas palavras de Clark, o que dá a coloração da pele de todas as esculturas.

Dizer que elas têm uma pele, aliás, não é exagero. Da mesma forma que a pele humana também tem camadas, sendo as de fora as mais translúcidas, as esculturas de Mueck ganham uma textura parecida com gente de verdade pela penetração da luz nessas camadas de plástico.

"É uma profundidade que vai além da pele", diz Clark. "Isso se torna convincente porque é como a pele natural. A luz atravessa essas camadas e é refletida de volta, o que causa um efeito muito distinto do que se fossem esculturas monocromáticas moldadas numa forma e depois só pintadas por cima."

Esse mesmo efeito de luz que entra na escultura e ressurge refletida na superfície acontece nos olhos das figuras, inspirados também num globo ocular humano. Mueck pinta à mão a íris dos olhos e depois recobre essa pintura com uma esfera de vidro ou resina transparente, uma lente que faz as vezes de córnea.

ELÃ VITAL

Isso explica o tal brilho no olho que dá a todas as obras uma espécie de elã vital.

Também como gente de carne e osso, as esculturas de silicone precisam de um esqueleto de madeira ou metal para ficar de pé, senão pareceriam molengas demais.

Embora quase todas sejam peças inteiriças e ocas, revestidas só na superfície pelas camadas de silicone, a maior delas, o casal de velhinhos gigantes sob um guarda-sol, é composta de oito partes que precisam ser montadas cada vez que a escultura é exibida.

Suas roupas, ela de maiô e ele de calção, são um desafio à parte, já que a trama do tecido e o caimento precisa ter o mesmo efeito que teriam no tamanho de uma pessoa real. Em geral, são feitas de cortinas e lençóis reaproveitados e ajudam a disfarçar as juntas dos pedaços da escultura.

Clark explica que essa obra de quatro metros de altura teve de ser esculpida aos pedaços porque o ateliê de Mueck, no Reino Unido, é muito pequeno. Até o seu piso teve de ser reforçado para que não afundasse com o peso dos blocos de argila.

Todas juntas, as obras agora na Pinacoteca pesam sete toneladas e por causa do tamanho avantajado precisam viajar num avião cargueiro específico, que não consegue fazer a rota da França, de onde vieram, ao Brasil sem antes fazer uma escala num terceiro lugar, no caso, Miami.

Bruno Assami, que organizou a turnê da mostra pela América do Sul, ainda revela outros números avantajados –15 dias de viagem para as peças divididas em 20 caixas e avaliadas em R$ 77,4 milhões.

Mas nada causa mais impacto que o realismo das peças. "Ele tem essa atenção ao detalhe para criar uma ponte com o público", diz Grazia Quaroni, curadora da mostra. "É por isso que é tão popular. São obras que falam da condição humana."

RON MUECK
QUANDO abre nesta quinta (20), às 10h; de ter. a dom., das 10h às 17h30; qui., até 22h; até 22/2
ONDE Pinacoteca, pça. da Luz, 2, tel. (11) 3324-1000
QUANTO R$ 6; grátis aos sábados


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