Folha de S. Paulo


Obra mostra o descalabro da utopia amazônica de Ford

Numa das primeiras cenas do novo filme de Melanie Smith, um jacaré é visto de perto, afundado no rio como se fosse uma pedra, até se despertar com violência –a câmera permanece o tempo todo no nível do olho do bicho.

Talvez seja disso que a artista britânica esteja falando quando diz que tentou criar uma "horizontalidade entre homem, animal e máquina" em "Fordlândia", trabalho que mostra agora na galeria Nara Roesler, em São Paulo.

No filme, Smith retrata de perto as ruínas da fábrica de látex construída nos anos 1920 no Pará pelo magnata da indústria automobilística Henry Ford, morto aos 83, em 1947.

Da utopia de instalar uma colônia industrial no coração da floresta amazônica, pouco sobrou. Smith retrata o descalabro do projeto de Ford alternando cenas da letargia da região com imagens que lembram calor e cansaço.

Não há meio termo. Smith intercala vastíssimos planos abertos, de vistas aéreas da floresta ou da superfície lamacenta do rio Tapajós, e planos fechados nos olhos, nas unhas e na barriga de homens que navegam Amazônia adentro.

"Há uma vibração dos corpos. É o pulso do lugar", diz a artista. "São enquadramentos saturados que editei como um sonho, com ecos de sons dos animais e das máquinas. Tentei retratar tudo no mesmo nível, embaralhando todas as camadas de sentido."

Não é a primeira vez, aliás, que a britânica radicada na Cidade do México volta atrás na história em busca das raízes de enigmas do presente.

Há quatro anos, Smith retratou as ruínas do castelo de Las Pozas, uma construção surrealista nunca concluída no meio de uma floresta mexicana, com escadarias perdidas nas copas das árvores.

Em "Fordlândia", ela registra o mesmo fenômeno, mostrando a selva invadir o antigo parque industrial. É uma espécie de réquiem às avessas para uma utopia plantada no mais inóspito dos lugares.

"Virou um espaço abandonado, e a natureza tomou conta de tudo", descreve Smith. "Mas aquilo já havia nascido como um desastre. Trabalhadores adoeciam ou eram atacados por animais, o clima era insuportável."

Nesse sentido, a obra de Smith assume tons quase românticos, numa afirmação da potência da natureza sobre a insignificância do homem. Mas passados mais de dois séculos do romantismo, é nítido que o lastro aqui é menos um delírio sobre o sublime e mais uma reflexão sobre distorções geopolíticas.

"Meu interesse era refletir sobre a invasão de um lugar tropical e desconhecido para fundar a modernidade", diz Smith. "Mas a natureza vai contra isso, está ligada ao presente. Não existe amanhã."

MELANIE SMITH
QUANDO abre nesta terça (19), às 19h, para convidados; de seg. a sex., das 10h às 19h; sáb., das 11h às 15h; até 1º/2
ONDE galeria Nara Roesler, av. Europa, 655, tel. (11) 3063-2344
QUANTO grátis


Endereço da página:

Links no texto: