Folha de S. Paulo


Crítica: Armadilhas na trama tornam livro de Chico uma autoficção insossa

"O Irmão Alemão" trata da tentativa empreendida pelo narrador ("Francisco de Hollander") para achar o meio-irmão alemão, de cuja existência fica sabendo tardiamente. Seria fruto de um caso do pai ("Sergio de Hollander") quando este morara em Berlim, em 1929 e 1930.

De volta ao Brasil, Sergio casa-se com uma italiana, cuja maior função é achar os livros que ocupam todos os cômodos da casa. Dela, tem mais dois filhos: Domingos, de olhos verdes irresistíveis, e o feioso Francisco. Entre eles, reina sólida rivalidade, centrada na disputa pela atenção do pai e na conquista das meninas, ambas vencidas pelo irmão burro e bonito.

Ao período juvenil de sonhos eróticos e voltas pela cidade em carros roubados pelo melhor amigo segue-se outro, quando os passeios são interrompidos por atos a favor e contra o golpe militar. Nos anos de chumbo, desaparecem tanto o amigo ousado como o irmão galã.

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Sergio Günther, o irmão alemão de Chico Buarque, em programa de TV na antiga Alemanha Oriental
Sergio Günther, o irmão alemão de Chico Buarque, em programa de TV na antiga Alemanha Oriental

Na última parte do livro, 40 anos depois, o narrador ainda busca o meio-irmão alemão, mas agora em Berlim.

A novela poderia guardar o encanto secreto das narrativas de busca, articuladas à tópica do duplo, não caísse em armadilhas fatais, que a tornam basicamente insossa.

A primeira é a incapacidade de ajustar o tom picaresco da narração, associado à rivalidade sexual dos irmãos, ao pitoresco italiano da mãe e ao caricato alheamento intelectual do pai, com o tema dos desaparecimentos.

A sobreposição dos acontecimentos pessoais e familiares com os que envolvem desaparecidos da repressão, que poderia querer significar uma introjeção afetiva da violência histórica, torna-se, ao contrário, uma submissão dos acontecimentos dolorosos a uma obsessão frívola.

A dificuldade está percebida, mas não resolvida na autodenúncia do narrador como gabola e cabotino. Tampouco se resolve, antes piora, na forma mais emotiva do último capítulo, porque os dados a arrumar são muitos e as páginas, poucas.

A segunda armadilha está dada pela forma de construir o passado com um realismo postiço, composto de marcas de carros, nomes de ruas, bares da moda, artistas, restaurantes etc. de uma São Paulo de 1968. Tudo junto, vira só etiqueta de um burocrático retrô, não imagem convincente da cidade da época.

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Até os festivais da canção são referidos dessa forma distante, desmaiada –o que demonstra que a experiência da vida, sozinha, não basta para fazer falar o texto.

E uma terceira armadilha diz respeito à produção de relatos pessoais que tomam a forma de investigações livrescas aleatórias, cheias de coincidências e achados. O resultado não é a representação de uma vivência única, mas um deixar cair de nomes que atua como pegadinhas literárias para o leitor esperto.

A biblioteca do pai vira então uma listagem de livros cujos enigmas não apontam para nada, a não ser um culturalismo genérico, anódino. É nesse ponto que a chamada autoficção se encontra com a gripe que mais pega na literatura atual, não apenas brasileira: a temível Borgiária, o mal da emulação de Borges.

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