Folha de S. Paulo


'Vida e Destino' é obra magistral da 2ª Guerra Mundial

Enfim, chegou às livrarias brasileiras o romance "Vida e Destino", do russo Vassili Grossman (1905-1964).

Nos anos 60, Mikhail Suslov, o comissário ideológico da União Soviética, leu o manuscrito e disse a Grossman que aquilo só poderia ser publicado nos dois ou três séculos seguintes. A policia foi à sua casa e confiscou até mesmo as fitas das máquinas de escrever. O escritor tinha cópias, uma foi contrabandeada e o romance saiu em francês em 1983.

Desde então é saudado como o "Guerra e Paz" da Segunda Guerra. Liev Tolstói mostrou a sociedade russa ao tempo da invasão napoleônica e da batalha de Borodino. Grossman mostrou a sociedade soviética a partir da batalha de Stalingrado.

Entre agosto de 1942 e fevereiro de 1943, lutando de casa em casa, os russos cercaram os alemães, capturaram um marechal, 22 generais e perto de 100 mil soldados. A batalha provocou 2 milhões de baixas. Ao seu final, o ponteiro da guerra virou na direção de Berlim.

Tolstói escreveu "Guerra e Paz" pelo que ouviu dizer, em muitos casos ajeitando a bola com a mão. Grossman, correspondente de guerra do jornal do Exército Vermelho, esteve nas batalhas de Moscou, Stalingrado, Kursk e Berlim.

Produziu um romance magistral. Ao contrário de Tolstói, ele foi um sofredor. "Vida e Destino" não tem Natashas radiantes (Audrey Hepburn no filme). "Guerra e Paz" começa com uma festa; "Vida e Destino", num campo de prisioneiros.

TODOS LÁ

Grossman contou a história de um povo que sofria o cotidiano stalinista tanto na paz como na guerra. Estão todos lá, o intelectual judeu (como Grossman), o burocrata cínico, o militar profissional e as mulheres de todos eles.

O valente comissário Krimov, a caminho da prisão, se dá conta de que, diante das injustiças do regime, não se calou por medo, mas porque a causa da revolução libertou o povo da moralidade, em nome da moralidade.

Um prisioneiro russo de um campo alemão avisa: "A história dos homens não é a batalha do bem tentando vencer o mal. A história do ser humano é a batalha do grande mal para destruir a semente do humanismo".

Alguns personagens de "Vida e Destino" existiram. O coronel Novikov, comandante dos tanques, viria a ser o marechal Babadzanhian e o agoniado Vitor Chtrum tem a ver com o próprio Grossman.

Eichmann é Adolf Eichmann, o condestável dos campos nazistas. Outros, foram "personagens esquecidos de tempos inesquecíveis" ou gente cuja "vida acabou, mas a existência continuará, indefinidamente".

É um livro sobre a Segunda Guerra no qual os nazistas não têm o monopólio da maldade. A mãe de Chtrum manda-lhe uma carta contando a entrada dos alemães na sua cidade da Ucrânia, com a disposição de matar todos os judeus. Uma vizinha aplaudia a ideia. Outra tomou-lhe o quarto. Ela foi mandada para o gueto, com direito a levar consigo 15 kg de pertences. Duas mulheres disputavam seus móveis e quando ela se despediu ambas choraram.

"Vida e Destino" vai das trincheiras de Stalingrado para os campos de concentração nazistas, dos apartamentos dos cientistas soviéticos para o Gulag, sempre com o mesmo tom de seca exposição das misérias humanas: "Quanto mais otimistas, mais mesquinhas e egoístas as pessoas tendem a ser."

Na batalha sofre-se com os combates, mas há um inimigo. Fora dela, as filas, a burocracia e o despotismo dos comissários constroem um cotidiano cruel e amorfo.

Desde sua publicação, "Vida e Destino" é tratado como um romance onde estão os totalitarismos nazista e comunista. Como ambos se foram, pareceria uma peça de antiguidade do século 20, mas ele é muito mais que isso. É um mergulho em algo que aconteceu numa escala maciça, mas que Grossman localizou no simples exercício do desprezo pela liberdade.

A tradução do russo custou dois anos de trabalho a Irineu Franco Perpetuo. Com 140 personagens e 900 páginas, a leitura de "Vida e Destino" exige o esforço de um combatente, mas é uma aventura inesquecível sobre um período que não deve ser esquecido.

Grossman é conhecido no Brasil por "Um Escritor na Guerra" (Objetiva), onde está o fascinante personagem do camelo cazaque Kuznechik, que foi a Stalingrado, aprendeu a se proteger nas trincheiras, chegou a Berlim, foi condecorado e babou na entrada da chancelaria do Reich.

VIDA E DESTINO
AUTOR Vassili Grossman
TRADUÇÃO Irineu Franco Perpetuo
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 89,90 (920 págs.) e R$ 29,90 (e-book)
AVALIAÇÃO bom


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