Folha de S. Paulo


Manoel de Barros foi revelado por Millôr e Houaiss; relembre trajetória

Quase meio século separou a estreia de Manoel de Barros na literatura —em 1937, com a publicação de "Poemas Concebidos sem Pecado" em tiragem artesanal de 21 exemplares— da circulação mais ampla de sua obra, na segunda metade dos anos 1980, graças ao voluntário trabalho de divulgação feito por jornalistas, escritores e intelectuais que passaram a admirá-lo.

Entre eles, Millôr Fernandes e Antonio Houaiss, para quem Manoel de Barros era comparável a São Francisco de Assis "na humildade diante das coisas".

O poeta Geraldinho Carneiro disse ter ficado surpreso pela "instabilidade semântica extremamente original que ele é capaz de criar". "É o maior poeta vivo do Brasil", chegou a afirmar Carlos Drummond de Andrade.

O curta-metragem "Caramujo-Flor" (1988), de Joel Pizzini, vencedor do Festival de Brasília, contribuiu também para o fenômeno de sua "revelação" nacional.

Quem seria o culpado por esse longo período de relativo desconhecimento, quase inexplicável diante da singular riqueza de sua poesia? O próprio Manoel de Barros, segundo ele mesmo.

"Sou muito orgulhoso, nunca procurei ninguém, nem frequentei rodas, nem mandei um bilhete", admitiu certa vez. "Eu publicava os livros e sumia para o Pantanal e me sentia desonrado porque não acontecia nada." Mesmo depois de consagrado tardiamente como um dos grandes poetas brasileiros de sua geração, ele permaneceu fiel às origens rurais.

Nascido em Cuiabá (MT), em 19 de dezembro de 1916, Manoel Wenceslau Leite de Barros mudou-se com a família, no ano seguinte, para Corumbá (MS), onde o pai, o capataz João Wenceslau Leite de Barros, fundou uma fazenda.

Manoel fez o antigo primário em um internato de Campo Grande e o ginásio no Rio de Janeiro, onde se tornou membro, em 1935, da Juventude Comunista, que abandonou quando Luiz Carlos Prestes, ao sair da prisão, discursou em apoio a Getúlio Vargas. Indeciso sobre o caminho profissional a tomar, retornou ao Pantanal e, em seguida, viajou pela Bolívia e pelo Peru. Depois, morou um ano em Nova York, onde estudou cinema e pintura. De volta ao Brasil, formou-se em direito no Rio de Janeiro, onde se casou com a mineira Stella Leite de Barros, filha de fazendeiros.

Em 1949, quando o pai morreu, herdou suas terras em Corumbá. Pensou inicialmente em vendê-las, mas a mulher o convenceu a restabelecer raízes no Pantanal, como um advogado que aprendeu a ser fazendeiro —para posteriormente deixar a administração da propriedade nas mãos dos filhos— e que o tempo todo continuou a escrever poesia com o objetivo de "atingir o íntimo das coisas".

Segundo ele, "poesia não é para compreender, é para incorporar. Entender é parede. Procure ser uma árvore." Na infância e adolescência, foi tocado ao conhecer no internato a obra do padre Antonio Vieira. "A frase para ele era mais importante que a verdade, mais importante que a sua própria fé. O que importava era a estética, o alcance plástico."

Na juventude, apaixonou-se pelos franceses Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire. Os poetas do cinema também o encantaram, com destaque para o italiano Federico Fellini, o japonês Akira Kurosawa e o espanhol Luis Buñuel. Dizia-se um "'vedor de cinema", mas sempre "numa tela grande, sala escura e gente quieta do meu lado".

"Não tenho nenhuma fluência", disse ao explicar seu processo de escrita. "As coisas me vêm como uma galinha que vai enchendo a oveira antes de botar o ovo." Para ele, o poema "é antes de tudo um inutensílio" que se justifica apenas pelo "encantamento".

Seu quarto livro, "Compêndio para Uso dos Pássaros" (1960), valeu-lhe o Prêmio Orlando Dantas da ABL (Academia Brasileira de Letras). Pelo décimo-segundo, "Livro sobre Nada" (1996), recebeu o Prêmio Nestlé de Literatura. Com o décimo-quarto, marcou sua estreia na literatura infanto-juvenil: "Exercícios de Ser Criança" (1999), vencedor do Prêmio Machado de Assis da ABL. Por "O Fazedor do Amanhecer" (2001), seu décimo-sexto livro, ganhou o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro (CBL). Entre suas principais obras, figuram também "Face Imóvel" (1942), "Gramática Expositiva do Chão" (1966) e "Ensaios Fotográficos" (2000).

Em entrevista à Folha, publicada em 15 de abril de 1989, por ocasião do lançamento de seu nono livro, "O Guardador das Águas", que lhe daria o seu primeiro Prêmio Jabuti, descreveu assim a sua relação com o meio que sempre o inspirou: "Entre o poeta e a natureza ocorre uma eucaristia. Uma transubstanciação. Encostado no corpo da natureza o poeta perde sua liberdade de pensar e de julgar. Sua relação com a natureza é agora de inocência e de erotismo. Ele vira um apêndice. Restará preso ao corpo, às lascívias, ao vulgar, ao comum, ao ordinário. É nesse sentido transnominal que eu uso a palavra ordinário. Por daí que se pode dizer que as palavras de um poeta vêm adoecidas dele, de suas raízes, de suas tripas, de seus desejos. Ao leitor resta se incorporar".

"Acho que um poeta usa a palavra para se inventar", disse pouco depois, em 7 de novembro de 1990, em entrevista ao jornal "O Globo", antes do lançamento de "Concerto a Céu Aberto para Solos de Aves". "E inventa para encher sua ausência no mundo. E inventa quase tudo. O poeta escreve por alguma deformação na alma. Porque não é certo ficar pregando moscas no espaço para dar banho nelas. Ou mesmo: pregar contiguidades verbais e substantivas para depois casá-las."


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