Folha de S. Paulo


Jornalista lembra de primeiro livro, obra de Maria Heloísa Penteado

"Lúcia Já-Vou-Indo não conseguia andar depressa. De maneira nenhuma. Andava devagar, falava devagar, chorava e ria devagarinho e pensava mais devagar ainda. Muito natural, pois ela era uma lesma."

Começava assim, de modo angustiante e resignado, o primeiro livro que li na vida, entregue na cerimônia que se fazia, no colégio em que estudei, para festejar a conclusão da alfabetização de uma turma.

Era o ano de 1978, e "Lúcia Já-Vou-Indo", da escritora e ilustradora Maria Heloísa Penteado, morta nesta semana, aos 95, já era um clássico entre as crianças.

Eu e meus colegas ríamos da lesma Lúcia, que não tinha muitos amigos porque era tão lenta para responder perguntas que não conseguia conversar com ninguém.

Era, porém, um riso amargo, pois essa espécie de fábula ia abrindo nossos olhos, talvez pela primeira vez, para o fato de que cada um tem limitações das quais não escapará até o fim da vida.

Reprodução
Lesma Lúcia chega quando a festa já acabou, em imagem do clássico livro infantil
Lesma Lúcia chega quando a festa já acabou, em imagem do clássico livro infantil

O livro narra a tentativa da lesma Lúcia de chegar a tempo a uma festa promovida por uma libélula.

A "molenga", como é tratada pela autora, demorou dias para arrumar o cabelo, encher sua cestinha de alfaces, fechar a casa e colocar-se a caminho.

Quando recebera o convite, ainda faltava uma semana para a festa, mas ela já se pôs ansiosa, antecipando uma desilusão.

Afinal, ao aniversário da própria vizinha, ela chegara um dia depois da comemoração e, ao casamento do seu amigo grilo, demorara tanto que já encontrara o casal com um filhinho.

No meio do trajeto, ela topa com uma pedra e cai, mas mesmo sua queda é lenta e aflitiva. "Lúcia-Já-Vou-Indo vinha vindo, vinha vindo. Tropeçou numa pedrinha, foi caindo, foi caindo", canta para ela um maldoso pé de maracujá que assistia à cena.

Aos prantos, ela finalmente chega, quando os convidados já se foram e a libélula está dormindo há horas.

Seu pranto, obviamente, também é lento. "Uma lágrima por hora, um soluço a cada meia hora."

IDENTIFICAÇÃO

"As crianças gostam demais desse livro porque causa identificação. Lúcia é desastrada, tem problemas de mobilidade, sente vergonha por ser grande demais ou ter um corpo diferente, é comum sentir-se assim nessa idade, e a autora identificou isso muito bem. Esse livro é um grande acerto", afirma a autora de livros infantis Heloísa Prieto.

Penteado nasceu em Araraquara, em 1919. Chegou a São Paulo em 1944 e passou a colaborar na imprensa local. "Lúcia Já-Vou-Indo" foi publicada pela primeira vez no jornal "O Estado de S.Paulo", no fim dos anos 50.

A versão em livro saiu em 1978, pela editora Ática, que ainda hoje publica a obra (R$ 28,90).

Penteado deu aulas e publicou outros 40 títulos para crianças. Ganhou o Prêmio Jabuti com "A Velha Fridela".

Viveu seus últimos dias com a irmã, Maria Helena, na Vila Mariana, em São Paulo. Na última sexta, sentiu falta de ar e foi levada ao hospital, onde morreu no domingo (2).


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