Folha de S. Paulo


Conheça histórias que dão vida a pesquisa sobre hábitos culturais em SP

Quatro pessoas que encontraram na literatura, na arte, na música e na tecnologia a sua forma peculiar de estar no mundo. Diferentes, mas iguais. A pesquisa sobre cultura em São Paulo faz a interseção entre esses universos.

O porteiro José Carlos da Silva, 52, engrossa os 42% de entrevistados da classe C com ensino superior que frequentam museus. O despachante Orlando Resende Lara, 50, está entre os 10% que ouvem Roberto Carlos (artista mais citado). A escritora Mirna Pinsky, 70, figura entre aqueles com mais de 60 anos que utilizam tecnologia para consumir cultura: 14% baixam filmes e 18%, música. E o estudante Eduardo Alencar, 21, está entre os 66% que leem livros emprestados.

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Vovó viciada em séries tem laptop, iPad e Kindle

Aos 70 anos, avó de seis, a escritora de livros infantis Mirna Pinsky, vencedora de dois Jabutis, é tecnologicamente letrada. Sobre a mesa, um iPad acoplado a um teclado e um laptop.

"Guardo os meus textos no Dropbox, serviço para armazenamento em nuvem. Assim, posso trabalhar no iPad de qualquer lugar", diz.

"Filmes eu não tenho baixado porque não preciso. Agora descobri o Netflix e assisto a todas as séries disponíveis. Sou viciada. Acabei de terminar House of Cards'."

A mais recente conquista tecnológica da escritora foi o Kindle. Desde que conseguiu vencer o preconceito de ler na tela, viajar ficou mais fácil.

"Leio muito e viajo muito. A combinação ficou perfeita. O problema é que estou compulsiva. Entro na loja da Amazon e compro tudo. Tenho 15 livros na fila."

"Minha vida se ampliou com a internet. Mas não quero ser dominada pela tecnologia. No Facebook eu não entrei", confidenciou. Ainda não...

Raquel Cunha/Folhapress
Tecnologia: 10% dos entrevistados com 60 anos baixam filmes na internet
Tecnologia: 10% dos entrevistados com 60 anos baixam filmes na internet

Aos 15, rapaz descobre barato de pegar livros emprestados

O estudante de pedagogia Eduardo Alencar, 21, costuma frequentar livrarias. Gosta de passear entre as estantes de livros, perambular ao léu. Mas não compra nada. Por dois motivos: nunca sabe o que levar para casa e, principalmente, não tem dinheiro para investir errado.

"Pegar emprestado tem vantagens. Você não gasta e alguém escolhe por você. O livro da minha vida eu descobri pegando emprestado", conta.

"Disse para uma amiga que queria ler algo que me fizesse chorar e rir. Ela passou o olho na estante e puxou um exemplar de O Meu Pé de Laranja Lima', de José Mauro de Vasconcelos. Li quatro vezes seguidas."

Eduardo nasceu no Jardim Miriam, zona sul de São Paulo. Até os 15 anos, nunca tinha lido um livro. O primeiro caiu na sua mão por acaso.

Convidado por uma amiga, foi conhecer a biblioteca de um projeto social voltado para literatura, chamado Os Escritureiros de Parelheiros. Ali, catou um livro.

"Li Casebre do Fantasma', da Luci Guimarães Watanabe. Comecei a descobrir o prazer de ler", diz.

Desde então, elegeu duas autoras favoritas: Ruth Rocha e Ana Maria Machado. Não gosta de livros da moda. Cita dois destes que leu e detestou: "Crepúsculo", de Stephenie Meyer, e "A Culpa É das Estrelas", de John Green.

E adora ser surpreendido por autores que não conhece. "Acho maravilhoso quando cai um livro de surpresa na minha mão. Livros têm que circular, têm que ter vida. Entre o meu grupo de amigos, é um troca-troca", comenta.

Danilo Verpa/Folhapress
Literatura: 66% dos pesquisador leem livros emprestados
Literatura: 66% dos pesquisador leem livros emprestados

Louco por Caravaggio, porteiro resgata Karl Marx da lixeira

O porteiro José Carlos da Silva, 52 anos, costuma repetir o mesmo programa nos dias de folga. Pega o metrô na rua da Consolação, desce na estação da Luz e adentra o seu paraíso: a Pinacoteca do Estado de São Paulo.

"Gosto de passar o dia inteiro na Pinacoteca admirando a coleção do Almeida Júnior. Sou apaixonado por arte e louco por Caravaggio", diz. "Vou mais a museus e bibliotecas do que ao cinema, porque é de graça."

No prédio onde mora e trabalha há 14 anos, na Bela Vista, região central de São Paulo, o Seu Zé é conhecido pelo gosto refinado e pela disposição para encarar uma escaramuça intelectual.

Nas semanas que antecederam as eleições, defendeu a então candidata Dilma Rousseff (PT) com golpes de Machado de Assis: "Depois que você lê Machado, nunca mais é humilhado. Machado me mostrou toda a hipocrisia do mundo. Todos os preconceitos estão na obra dele. Recito Helena' de cor e salteado".

Seu Zé nasceu em Carpina, a 65 quilômetros do Recife, numa família de cinco filhos. Aos 18 anos, resolveu tentar a vida em São Paulo. Chegou com uma mão na frente e outra atrás, como diz, e logo arrumou um emprego de faxineiro nos Jardins.

CURSO NO MASP

"Na escola primária, tive uma professora que dizia: procure conhecimento, meu filho'. Isso nunca me saiu da cabeça. Logo que cheguei aqui fui atrás de uma biblioteca. Passava os dias de folga na biblioteca Presidente Kennedy, em Santo Amaro", lembra.

O gosto pela arte veio depois. Em 2003, leu no jornal sobre um colecionador que havia pago milhões de dólares num quadro de Van Gogh. Ficou intrigado com a cifra.

"Como é que podia um quadro custar tanto dinheiro? Uma vizinha me falou, então, de um curso de história da arte no MASP. Liguei, expliquei minha situação e ganhei uma bolsa. Um ano inteiro estudando arte, melhor ano da minha vida", comenta.

E continua: "Cultura é caro. Completei o ensino médio no Sesi. Em 2010, fiz o Enem, passei e entrei no curso de turismo. Agora estou querendo estudar história na PUC. Mas só a inscrição do vestibular custa 10% do meu salário".

A sorte do Seu Zé é que cultura também se acha no lixo: "Lixo de prédio é uma surpresa. Uma vez encontrei uma caixa cheia de livros bons. Até O Capital', do Karl Marx. Ainda não li, mas vou ler em breve. Está na fila".

Danilo Verpa/Folhapress
O porteiro José Carlos da Silva, 52, frequenta museus e bibliotecas
O porteiro José Carlos da Silva, 52, frequenta museus e bibliotecas

Fã nº 1 do Rei quis chamar uma filha de Roberta Carla

O comerciante Orlando Resende Lara, 50 anos, tem quatro filhos: Roberta, 17 anos, Gabriel Roberto, 14, Carolina, 7, e Roberto Carlos, 6. Todos foram batizados com a bênção do Rei em pessoa.

"Quando minha primeira filha nasceu, ia chamar Roberta Carla, mas o Roberto mandou colocar só Roberta. Obedeci. O do Gabriel Roberto ele adorou, nome de anjo. Carolina foi ideia dele, o verdadeiro feminino de Carlos. E o último é Roberto Carlos", conta Orlando.

Ele vive com a família em Mairiporã, região metropolitana de São Paulo. A casa é um santuário para Roberto Carlos, com pôsteres, discos, retratos e souvenires. Orlando também batizou sua autoescola com as iniciais RC.

Até se aproximar do cantor, ele percorreu um calvário, que começou na infância. "Tinha língua presa e não falava. Meu irmão me mandou cantar músicas do Roberto até destravar", diz.

Aos oito anos, tentou suicídio em nome do Rei. "Meu cabelo era tipo Garota papo firme'. A professora cortou. Saí da escola e pulei na frente de um carro", conta.

Aos 18, o primeiro encontro: "Persegui o carro dele depois do show e fiquei de pé na moto para chamar a atenção. Ele ficou desesperado, me mandou sentar. No show da noite seguinte, abordei a Lady Laura [mãe do cantor] na plateia e ela me levou ao camarim. O Roberto me recebeu assim: Bicho, não faz mais isso'".

A partir daí, Orlando foi a shows por todo o Brasil. Até para o casamento do cantor com Maria Rita acabou convidado. "E fui no enterro dela também", comenta.

Nos aniversários de RC, Orlando pega a estrada e se planta na porta do cantor, no Rio. "Ele desce para me dar um oi. Sou amigo do Rei".

Danilo Verpa/Folhapress
Música: 10% dos entrevistados ouvem Roberto Carlos
Música: 10% dos entrevistados ouvem Roberto Carlos

O padre é pop

O padre André Torres, 47 anos, já estourou a cota de amigos no Facebook e tem 1.500 contatos no WhatsApp. Pároco do Santuário Sagrado Coração de Jesus, no centro de São Paulo, não anda agarrado ao terço. Nas mãos, sempre o inseparável I-Pad.

"Tenho I-Pad, I-Phone, I-tudo. Os jovens estão de novo encontrando na igreja uma possibilidade de diálogo. Às vezes levanto no meio da noite para responder mensagens de adolescentes com as mais diversas dúvidas, sobre sexo, briga com os pais, livros", diz.

Para ficar próximo dos seus seguidores nas redes sociais, o padre se permite as mais mundanas leituras. Leu toda a saga de Harry Porter. "O primeiro volume eu li ainda em inglês, em dois dias. Todo mundo me pressionando: as mães preocupadas com a magia e o misticismo da obra e os jovens querendo ler", comenta.

O best-seller "Código Da Vince", o padre André devorou em uma noite insone. "Dan Brown mistura fatos históricos com ficção. Era preciso entender a obra para ajudar os jovens a ler com senso crítico", avalia.

Certa feita, levou colegas de sacerdócio ao teatro para assistir a peça "A Alma Imoral", com direção de Amir Haddad e texto baseado no livro homônimo do rabino Nilton Bonder.

"A atriz aparece nua no palco e o texto é muito forte. Éramos três padres e três freiras. Na igreja, precisamos dialogar com a cultura. Temos que ter disponibilidade para estar perto do jovem, acompanhando os seus questionamentos", diz.

Sobre o que está lendo agora, o padre André assume. Anda perdendo as noites com outro best-seller, o autor britânico de thrillers e romances históricos, Ken Follett: "Durmo com o celular de um lado e o novo livro do Follett, 'Queda de gigantes', do outro".


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