Folha de S. Paulo


Conheça os cinéfilos que madrugam para comprar pacotes da Mostra

Carlito Salvatore acordou às 4h do último sábado (11) e, quando clareou o dia, foi para o Conjunto Nacional, na avenida Paulista.

Chegou às 6h20 para tentar repetir o primeiro lugar na fila —posto obtido quatro anos atrás— da compra dos pacotes para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa nesta quinta (16) e vai até o dia 29 de outubro.

Mas Ademar, vencedor desta espécie de competição, já estava lá —e não quis falar com a Folha. "Eu ia chegar às 3h30, mas achei coisa de fãs do Justin Bieber", diz Salvatore, roteirista de 44 anos, que se preparou para aguardar até as 11h, quando abriram as vendas. Levava na bolsa sanduíches de mortadela e um livro. "Mas eu subi no pódio, sou medalha de prata", diz.

Davi Ribeiro - 30.ago.2014/Folhapress
Fila para a compra dos pacotes na Central da Mostra, no Conjunto Nacional
Fila para a compra dos pacotes na Central da Mostra, no Conjunto Nacional

Num universo de 330 filmes de países como Geórgia, Tanzânia e Azerbaijão, novidades que rodaram festivais no mundo e pequenas produções que, muitas vezes, jamais passarão de novo nos cinemas, o longa que Salvatore mais quer ver é um de 1980.

É "Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão", um dos primeiros de Almodóvar e o único do diretor espanhol que ele nunca viu.

Assim como Salvatore, que acompanha a Mostra desde 1988, outros antigos frequentadores do evento estavam na fila que, às 10h, já tinha em torno de cem pessoas. Cerca de 2.000 pessoas adquiriram pacotes na edição passada.

Esses cinéfilos dedicam duas semanas por ano para correr de uma sala a outra —nesta edição são 35— vendo de três a seis filmes por dia, com tempo apenas para comer uma barra de cereais ou um chocolate, por exemplo, entre as sessões.

Davi Ribeiro/Folhapress
O roteirista Carlito Salvatore, o 2° a chegar
O roteirista Carlito Salvatore, o 2° a chegar

HERANÇA

Renata Nogueira, 48, é uma delas. Frequentadora da Mostra desde a década de 1980, ela arrastou para a cinefilia pai, mãe, dois irmãos e a filha, Maíra, de 16 anos, que a acompanha desde os nove.

A física e professora de matemática conta que todo ano elas escolhem ao menos um filme pelo critério "esse nome é bom demais, queremos saber do que se trata", sem ler a sinopse.

O escolhido deste ano foi "Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência", de Roy Andersson.

"A primeira vez que fiz isso foi com O Inglês que Subiu a Colina e Desceu a Montanha'", relembra Nogueira. Era um filme inglês, de 1995, de Christopher Monger, com Hugh Grant no elenco.

Ela e a filha revelam outra "mania de Mostra": trocar os ingressos do pacote (vouchers numerados para 20 ou 40 filmes, no caso dos pacotes limitados) do último para o primeiro, "para ficar em contagem regressiva".

Outra competição entre os cinéfilos é pela quantidade de filmes vistos. Os que adquirem os pacotes de 20 ou 40 filmes às vezes ultrapassam a cota com ingressos avulsos. Quem compra o pacote ilimitado chega a ver mais de 60.

"Isso contando a repescagem [dias a mais, depois do fim do evento, em que são exibidos os destaques da Mostra em menos salas]", diz Lúcia Helena Lessi, advogada de 63 anos que assiste a cinco ou seis filmes por dia. "Reduzo extremamente meu trabalho, só faço o necessário, meus amigos até me perdoam se não vou a um aniversário."

NOVATOS

Na fila também havia novatos. O indiano Raju Roychowdhury, 32, mora no Brasil desde abril e esteve mês passado no Festival do Rio. Em sua ficha para a compra, no campo profissão, ao lado de físico, escreveu "cinéfilo".

Também estreantes, as publicitárias Caren Dias, 30, e Juliana Batista, 33, escolheram juntas os 20 filmes de seus pacotes e, dentre eles, estão os de Almodóvar e a versão sem cortes de "Ninfomaníaca", de Lars von Trier.

Entre as memórias de mais de 30 anos de Mostra, Lessi relembra a amiga que só via uma vez por ano, Sônia, que vinha do Recife, "ou Maceió, não tenho certeza", e que morreu "há três Mostras" [há três anos]. "Eu guardava o lugar dela na sala, e continuo guardando o lugar imaginário."


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