Folha de S. Paulo


Análise: Hugo Carvana teve real vocação para o humor

Hugo Carvana, morto no último sábado (4), aos 77 anos, de consequências de um câncer no pulmão, desenvolveu desde os anos 1950 uma carreira de ator de cinema e teatro.

Seu vínculo ao pensamento de esquerda o aproximou do Teatro de Arena, em São Paulo, e do Opinião, no Rio. Mas é no Cinema Novo que começou a deixar sua marca, trabalhando com quase todos os principais diretores.

A lista: Ruy Guerra ("Os Fuzis"), Leon Hirszman ("A Falecida"), Paulo Cesar Saraceni ("O Desafio"), Glauber Rocha ("Terra em Transe", "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro"), Eduardo Coutinho ("O Homem que Comprou o Mundo"), Gustavo Dahl ("O Bravo Guerreiro"), Joaquim Pedro de Andrade ("Macunaíma"), Cacá Diegues ("Os Herdeiros").

Todos filmes da década de 1960, em que o cinema se colocava em franca oposição ao regime militar.

Divulgação
Hugo Carvana (dir.) com Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão em cena do filme
Hugo Carvana (dir.) com Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão em cena do filme "Quando o Carnaval Chegar" (1972)

Embora tenha filmado no exterior com Glauber Rocha ("O Leão de Sete Cabeças", de 1970), foi num filme de pequena produção, rodado originalmente em 16 mm, que seu talento pôde se manifestar plenamente, fazendo Santamaria, o bandido místico que, em companhia de Urtiga (Milton Gonçalves), mata o dono de uma casa e ataca sadicamente duas mulheres.

"O Anjo Nasceu", de Júlio Bressane, era um dos filmes inaugurais do cinema "marginal", que deslocava a luta de classes, preocupação dos cinemanovistas, e observava a ascensão do banditismo num país incapaz de resolver contradições sociais agudas.

PRÊMIOS

Seu pleno reconhecimento só viria em 1973, com "Vai Trabalhar Vagabundo", de que também foi diretor e corroteirista, imenso sucesso de público e também de crítica, que lhe valeu prêmios de melhor filme no Festival de Cinema de Gramado (1974), e o prêmio Air France de Cinema (1973), entre outros.

Carvana faz Dino, malandro que, ao sair da cadeia, constata o fim da malandragem carioca, desse modo de vida que consagrou o próprio homem carioca: bom humor, horror ao trabalho, artista do trambique e do engodo.

Ora, tratava-se de uma visão profunda da situação da cidade, mas também (ou sobretudo) do Brasil. Estávamos no governo Médici, numa sociedade em que os valores militares (trabalho, disciplina, patriotismo) ganhavam força -todo o oposto da malandragem, enfim.

No mais, a figura do malandro era típica do Rio capital federal, o que a cidade deixara de ser em 1964. Notava-se não apenas o desaparecimento de um "espírito carioca" como a decadência econômica. No filme, Dino busca um ressurgimento da malandragem ao promover uma célebre disputa de sinuca envolvendo dois campeões (Paulo César Pereio e Nelson Xavier).

Esse foi o momento mais forte de Carvana como diretor. "Bar Esperança" (1982) foi outro, em torno dos célebres bares que congregavam os intelectuais do Rio de Janeiro durante a ditadura.

Desde então, a carreira oscilou entre momentos fracos (a refilmagem de "O Homem Nu", 1997) e outros felizes, mas que não mereceram maior atenção do público ("Não Se Preocupe, Nada Vai Dar Certo", 2011).

O que não o impediu de receber prêmios de melhor ator como Kikito do Festival de Gramado em 1991 e o Troféu Candango do Festival de Brasília do mesmo ano, pelo malogrado "Vai Trabalhar Vagabundo 2 - A Volta".

É preciso lembrar que nesse momento o cinema brasileiro vivia sua mais grave crise desde os anos da Segunda Guerra, devido ao fechamento sumário da Embrafilme, no primeiro dia do governo Collor, em 1990.

TELEVISÃO

Se o cinema era paixão declarada de Hugo Carvana, a televisão lhe deu maior reconhecimento dos espectadores, nos diversos trabalhos para a Rede Globo, em que atuou regularmente desde que Daniel Filho o convidou para fazer parte do seriado "Plantão de Polícia" (1979), no papel de Waldomiro Pena.

Carvana trabalhou em diversas novelas, tendo se destacado sobretudo em "Celebridade", de Gilberto Braga (2003/2004), trama das 20h onde fazia o papel de Lineu Vasconcelos, o presidente do Grupo Vasconcelos.

Em "Como uma Onda" (2004), de Walter Negrão, fez novamente o papel de um empresário: Sinésio Paiva. "Em Paraíso Tropical" (2007), novamente com Gilberto Braga, faria um papel bem à sua feição, o do trambiqueiro Belisário. Voltaria a trabalhar numa novela de Braga em 2011, como Olegário Silveira em "Insensato Coração".

Ator em mais de 60 filmes, com vários prêmios, autor de nove filmes em que afirmou um gosto iconoclasta, por vezes anárquico, mesmo na TV Carvana procurou sempre manter-se aberto ao humor, sua verdadeira vocação. Os tipos mais marcantes, entre seus mais de 30 trabalhos (entre minisséries, seriados e novelas) foram aqueles em que podia acentuar traços humorísticos dos personagens.


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