Folha de S. Paulo


Lepage se reconcilia com teatro em 'Jogos de Cartas'

O diretor canadense Robert Lepage, 56, tomou de assalto o teatro mundial há duas décadas, com um misto de mágica visual e fábula. Era "o gênio de Québec", comparado a Peter Brook no teatro e Fellini no cinema. O Brasil conheceu sua obra em 1998, com "Needles and Opium", agulhas e ópio -que acaba de ser remontada e está em turnê.

Ele volta agora ao país com as duas primeiras peças da tetralogia "Playing Cards", em português, "Jogos de Cartas". E anuncia sua reconciliação com o teatro, depois de inúmeras peças em que a multimídia foi protagonista.

Na primeira, "Espadas", retrata Las Vegas, nos EUA, e Bagdá, no Iraque, no momento da invasão americana, em 2003. Na segunda, "Copas", o paralelo é entre o próprio Québec, província canadense onde ele nasceu e trabalha, a França e a Argélia.

As peças são em árabe, inglês e francês, e receberão legendas em português nas apresentações em São Paulo, a partir do próximo dia 11.

Em entrevista por telefone, Lepage diz que seu processo pouco mudou, por exemplo, no sentido de apostar em criação coletiva, com os atores, para escrever o texto. Mas o formato é diferente: "Espadas" e "Copas" são apresentadas em palco circular, arena, como num circo.

"Por muito tempo, como trabalhava com multimídia, meus espetáculos se tornaram bidimensionais, com projeções, teatro de sombras, todas essas coisas", diz ele, acrescentando, rindo: "Acabei me sentindo preso entre telas e pensei: Tem algo errado aqui, precisamos quebrar a moldura, descobrir como nos tornarmos esculturais".

Com isso em mente, as primeiras improvisações para criar "Jogos de Cartas", com os atores sentados numa mesa redonda, jogando pôquer, inspiraram a mudança. "O que acho interessante é que isso reconcilia o meu trabalho com o teatro, no sentido de trazer a influência do circo e ser menos bidimensional."

São peças também mais diretamente políticas, ao retratarem as relações do Ocidente com o mundo árabe.

"Meu trabalho é sempre político, sem que a gente queira, como todo trabalho que trata do seu tempo", afirma Lepage. "Em momento nenhum as pessoas chegam com um discurso político. Desenvolvemos as personagens e as situações e eventualmente ele se torna político."

No caso, "Jogos de Cartas" veio inicialmente do período que ele passou em Las Vegas, dirigindo um espetáculo do Cirque du Soleil até hoje em cartaz, "KÀ", no momento em que o Iraque era invadido. "Nós não sabíamos que jogar cartas era algo que havíamos herdado da cultura árabe, então muitas coisas vieram daí."

Abaixo, a íntegra da entrevista com o artista canadense.

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Folha - O Brasil teve um primeiro contato com seu trabalho em "Needles and Opium", quase 20 anos atrás, que agora ganhou uma nova produção. Como você vê a peça hoje? E você teve tempo e vontade para uma reavaliação do seu trabalho desde então?

Robert Lepage - A ideia de remontar "Needles and Opium" veio do ator que havia interpretado a peça [Marc Labrèche]. Nesse período, ele virou uma grande celebridade de televisão [risos], então não havia muito tempo na sua agenda para fazer teatro. Agora ele quis remontar, e eu disse que não estava interessado em fazer a peça de novo se não a revisitássemos completamente. Porque o mundo mudou, muitas coisas aconteceram, todos nós nos desenvolvemos, amadurecemos. "Needles and Opium" é um espetáculo sobre relações viciadas e amor e drogas, tudo isso. Tanto o ator como eu atravessamos 20 e tantos anos de experiências [risos] e somos pessoas muito diferentes. Ele concordou em misturar a coisa toda de novo. Mudamos a forma, acrescentamos cenas e procuramos esclarecer coisas que não eram tão claras. Então foi uma remontagem completa.

Folha - E você chegou a alguma conclusão sobre o seu trabalho, desde esta que foi uma das suas primeiras peças?

Lepage - Muito do meu trabalho é "work in progress" [trabalho em andamento], em qualquer momento, mesmo quando as pessoas pensam que está pronto. Na minha cabeça, nunca está pronto. Mas muitas vezes nós vamos até onde podemos, com uma produção, e então a deixamos dormir por anos. Quando voltamos a ela, no caso de "Needles and Opium", eu pude ver como era inacabada. E como era injusta. Por exemplo, havia um fio na peça sobre Miles Davis, mas muito do espetáculo era obcecado por Jean Cocteau e pelo personagem de Quebéc -e Miles Davis era só uma sombra. Então eu vi que era um trabalho muito inacabado, embora tenha feito uma longa turnê e tenha sido aclamado como um trabalho pronto. Na verdade, era muito, muito "sketchy", rudimentar. [risos] A maior parte do meu trabalho, com o tempo, soa um pouco rudimentar.

Folha - Agora você está vindo ao Brasil com duas das peças de "Jogos de Cartas". Como descreveria seu processo de criação hoje? Quais são as diferenças, se é que existem, nas suas técnicas de palco, por exemplo?

Lepage - A minha maneira de desenvolver peças, com muitos atores, se manteve praticamente a mesma, no sentido de que acredito em criação coletiva, em escrever como grupo. Quanto ao estilo do espetáculo, sua forma, estes dois são espetáculos de arena, em que trabalhamos em palcos circulares. Por muito tempo, como trabalhava com multimídia, com muita projeção, meus espetáculos se tornaram muito bidimensionais. Acomodando projeção, teatro de sombras, todas essas coisas, eu acabei me sentindo preso numa armadilha, entre telas [risos], e pensei: Tem algo errado aqui, precisamos quebrar a moldura, temos que descobrir uma maneira de nos tornarmos esculturais novamente.

Quando começamos a fazer "Jogos de Cartas", as primeiras improvisações que fizemos foram com pessoas sentadas em torno de uma mesa redonda, jogando pôquer. E pensei que seria bom se tivéssemos um espetáculo em que não há marcação de esquerda ou direita no palco. As pessoas podem nos ver de todos os lados. É claro que é muito, muito desafiador fazer espetáculos em arena. Até aqui só produzimos dois, "Espadas" e "Copas", mas quando produzirmos os outros dois, será muito trabalho circular [risos]. Há algumas vantagens e há algumas desvantagens. A coisa que eu acho interessante é que isso reconcilia o meu trabalho com o teatro, no sentido de trazer a influência do circo, necessariamente, porque é de arena, e ser menos bidimensional, estar mais para um objeto escultural.

Folha - Tanto "Espadas" como "Copas" lidam com o mundo árabe, a primeira aborda diretamente a invasão do Iraque, uma guerra que os EUA acabam de retomar. Você descreveria este novo trabalho como político? E qual é o papel que o teatro pode exercer, diante de tais tragédias políticas?

Lepage - Meu trabalho é sempre político, sem que a gente queria sê-lo [risos], como todo trabalho que trata do seu tempo. Se vamos fazer algo que se passa em Las Vegas nos anos 2000, há grande chance de que seja sobre política. Mas não forçamos, em momento nenhum as pessoas chegam com um discurso político. Desenvolvemos as personagens e as situações e eventualmente ele se torna um pouco político, mas não é seu objetivo inicial. Nunca pretendemos, na origem, fazer uma peça política. E "Jogos de Cartas" se tornou uma obra sobre o mundo árabe por acaso. Nós não sabíamos que jogar cartas era algo que havíamos herdado da cultura árabe, então muitas coisas vieram daí. Mas não somos obcecados por isso, não nos forçamos a fazer algo em torno disso. E são dois espetáculos radicalmente diferentes.

"Espadas" é como um afresco. Seguimos várias personagens, várias histórias, algumas delas se cruzam. É mais um afresco sobre Las Vegas, obviamente muito inspirado pelo tempo que passei lá. Fiz um espetáculo do Cirque du Soleil em que talvez um terço do elenco era do Brasil [risos]. A minha experiência em Las Vegas foi muito afetada pelo que estava acontecendo na guerra do Iraque, enquanto as pessoas estavam vivendo em pecado e jogando, ou seja, uma visão impressionista de Las Vegas. O segundo espetáculo, "Copas", tem mais uma história. Nós seguimos a busca de um herói. É um espetáculo sobre identidade, que trata de outras partes do mundo árabe, Marrocos e Argélia, toda a relação da Argélia com a França e, por eco, da França com Québec. A história é escrita em grande parte como um roteiro de filme, quase como "road movie". Um "road movie" em palco circular [risos]. É um espetáculo também sobre mágica, sobre muitas outras coisas, mas o fio básico é a busca argelina por liberdade. É um espetáculo mais épico, de certa maneira.

Folha - Como você disse, "Copas" é também sobre mágica. Você consegue abordar um pouco da sua própria magia, como muitos descrevem seu trabalho?

Lepage - Bom, eu não me considero necessariamente um mágico [risos], fico lisonjeado quando as pessoas me elogiam assim, mas não me considero um mágico. Sou interessado, é claro, pelo mundo da ilusão, pelo mundo da magia, portanto, foi uma grande oportunidade para entrar nesse mundo. Em "Copas", há dois períodos, o mundo de hoje e no século 19. Paris era "a" cidade dos mágicos. Era onde eles se reuniam, por ser um ponto de encontro de toda a nova tecnologia. Os mágicos eram famintos por novos dispositivos que os ajudassem no seu ofício. Com o tempo, começou o cinema. As primeiras câmeras, as primeiras imagens em movimento começaram no final do século 19 e eram feitas por mágicos. Georges Méliès era um mágico-assistente. As pessoas se esquecem hoje que o cinema, na sua origem, foi um truque de mágica [risos]. Não foi criado com o propósito de contar histórias. Cinema era um truque, uma ilusão. Esse é basicamente o comentário que fazemos na peça.

A razão por que está ligada à Argélia é que em 1835 a França havia se apropriado do país. Houve combates ao longo de todo o século 19 contra rebeldes, que, é claro, estavam certos na sua busca por liberdade. A certa altura, Napoleão 3º enviou para a Argélia o maior mágico de todos os tempos, Robert-Houdin, para tentar convencê-los que a mágica francesa era mais poderosa, mais moderna e sofisticada do que a mágica de seus líderes espirituais, que estariam realizado truques banais para convencer os fiéis. É uma história fascinante, que realmente aconteceu. Robert-Houdin foi à Argélia e se viu numa situação muito estranha lá. E foi uma grande oportunidade para nós também visitarmos as origens do ilusionismo e a relação entre mágica e fé. Porque os mágicos dependem do que chamamos de "suspension of disbelief" [suspensão de descrença], então são muito, muito ligados à religião. "Copas" é em grande parte sobre sistemas de fé, sobre ser devoto, acreditar ou não acreditar.

Folha - As próximas duas peças também serão sobre o mundo árabe?

Lepage - Sim. É claro que estamos acompanhando o que está acontecendo no mundo agora [risos]. Mas os diferentes naipes já carregam forte significado, têm temas com os quais se conectam. "Espadas" [em inglês, "Spades"] é ligado à espada, a relação é sempre com o exército, é militar. Então a peça é sobre a guerra com o Iraque, os campos de treinamento militar no entorno de Las Vegas. "Copas" [em inglês, "Hearts"] era antes representado por um cálice, como na busca do cálice sagrado, então a peça é sobre religião. É sobre cruzadas e a oposição entre cristãos, judeus e o Islã. Trata sobretudo de sistemas de fé.

"Ouros" [em inglês, "Diamonds"] era antes representado por moedas, portanto, se liga ao mundo dos negócios, à economia. Estamos interessados em ir para lugares como Dubai [risos] para tentar compreender esse aspecto. Os emirados e sua relação com o comércio, os países árabes ricos. "Paus" [em inglês, "Clubs"] antes era um bastão, o que se relaciona ao tema dos camponeses, porque eles trabalhavam com bastões, mas também com os proletários. Portanto, trata de massas, de revolução, povos tomando o sistema. É claro que tudo o que aconteceu na Primavera Árabe é uma grande inspiração para nós. Ainda vamos ver, mas talvez seja mais sobre o Egito e como o Egito está constantemente se debatendo para encontrar sua definição na ordem mundial de hoje.

JOGOS DE CARTAS
QUANDO "Espadas": dias 11, 14 e 15 de outubro, às 21h, e 12, às 18h. "Copas": dias 22, 23, 24 e 25 de outubro, às 20h
ONDE Sesc Santo Amaro - r. Amador Bueno, 505, (11) 5541-4000
QUANTO R$ 60 (ingressos à venda nas unidades do Sesc)


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