Folha de S. Paulo


'Sou uma espécie de pária no mundo literário japonês', diz Murakami

"Coisas estranhas acontecem neste mundo", diz Haruki Murakami. "Você não sabe a razão, mas acontecem".

Esse poderia ser o motivo central de toda a sua ficção, mas ele está falando especificamente de um personagem menor em seu mais recente romance, "O Incolor Tsukuru Tazaki e seus Anos de Peregrinação", que a a Alfaguara publica em novembro no Brasil. O personagem é um pianista de jazz que parece ter feito um pacto com a morte, e tem a capacidade de ver a aura das pessoas.

"Por que aquele pianista é capaz de ver a cor das pessoas eu não sei", reflete Murakami. "Simplesmente acontece."

Os romances em geral se beneficiam de algum mistério, em sua opinião. "Se o segredo muito importante não é resolvido, os leitores ficam frustrados. E isso não é o que você quer. Mas se determinado tipo de segredo se mantém secreto, a curiosidade que isso causa é muito sólida. Creio que os leitores precisem disso."

O mais popular dos romancistas cult do planeta está tomando um café na ensolarada biblioteca de um hotel de Edimburgo, e —o que talvez desaponte os admiradores de suas tramas mais fantásticas— o caminho até ela não envolve uma rede labiríntica de túneis subterrâneos. Murakami é afável e parece relaxado, sem traço algum de inacessibilidade gnômica. "Não sou misterioso!", ele diz, rindo.

Marion Ettlinger/The Harvill Press/Bloomberg News
O escritor japonês Haruki Murakami
O escritor japonês Haruki Murakami

"Tsukuru Tazaki", o nome pelo qual o autor abrevia seu novo romance, vendeu um milhão de cópias em duas semanas, quando foi lançado na metade do ano passado, no Japão.

Murakami nasceu em Kyoto, filho de dois professores de literatura, e cresceu na cidade portuária de Kobe. Hoje em dia, vive perto de Tóquio, depois de passar períodos longos na Grécia e nas universidades de Princeton e Tufts —onde escreveu sua obra-prima, "Crônica do Pássaro de Corda"— e mais recentemente no Havaí.

A história contém mistérios passageiros, como o pianista que vê auras, mas é também um romance de mistério no sentido mais amplo. Tsukuru, 36, o protagonista, continua a sentir nostalgia pelos anos que viveu antes da universidade, quando era parte de um grupo inseparável de cinco amigos —até que um dia os demais companheiros o informam, sem qualquer outra explicação, de que nunca mais querem vê-lo.

"Quando comecei, pretendia escrever um conto", diz Murakami. "Só queria descrever esse cara de 36 anos, muito solitário... Queria descrever sua vida. Assim, o segredo dele não deveria ser dissolvido, o mistério continuaria a ser mistério."

Mas o escritor não havia levado em conta o poder de incitação de uma mulher, que surgiu para levar a história adiante, como as mulheres nas obras de Murakami tantas vezes fazem.

"Quando escrevi a parte do conto", ele prossegue, "Sara, a namorada [de Tsukuru], o procurou e disse que ele deveria tentar descobrir o que aconteceu, o que o levou a viajar a Nagoya para procurar seus velhos amigos. E a mesma coisa aconteceu comigo —Sara me procurou e me disse o que fazer. A ficção e minha experiência aconteceram ao mesmo tempo, em paralelo. E com isso a história se tornou um romance."

Murakami fala com frequência do tema de duas dimensões, ou realidades, em seu trabalho: um mundo normal, cotidiano, evocado com grande beleza, e um estranho reino sobrenatural ao qual personagens ganham acesso sentando no fundo de um poço (como o herói de "Crônica do Pássaro de Corda") ou usando a saída de emergência errada de uma via expressa elevada (como em "1Q84").

Sonhos também podem servir como portais entre as duas realidades. Em "Tsukuru Tazaki", há um notável sonho sexual, em cujo clímax o leitor não tem certeza de que Tsukuru esteja acordado ou dormindo. Mas Murakami raramente recorda seus sonhos.

"Certa vez conversei com um famoso terapeuta no Japão", conta o escritor, "e disse a ele que não sonhava muito, quase nada. Ele respondeu que aquilo fazia sentido, e eu perguntei por quê, por que fazia sentido. Mas o tempo tinha acabado. Eu estava esperando uma nova sessão com ele, mas ele morreu três ou quatro anos atrás". Murakami sorri tristemente. "Muito triste."

Os romances de Murakami até o momento podem ser divididos em dois tipos. Há as histórias em que o realismo mágico é explícito ("Caçando Carneiros", "Crônica do Pássaro de Corda", "1Q84") e obras nas quais ele trabalha com tela menor, e nas quais os indícios do sobrenatural ficam no geral ocultos por sob a bela e triste superfície mundana ("Ao Sul da Fronteira, a Oeste do Sol", "Minha Querida Sputnik").

Com seus mistérios não resolvidos, histórias dentro da história e possíveis sonhos, "Tsukuru Tazaki" parece quase um híbrido entre os dois estilos.

"Eu vinha pensando que meus romances são divididos em categorias, como você diz", concorda Murakami. "É como as sinfonias de Beethoven, você sabe, as pares e as ímpares. A Terceira, a Quinta, a Sétima e a Nona são grandes sinfonias, e a Segunda, Quarta, Sexta e Oitava são mais íntimas. Acho que meus romances funcionam do mesmo jeito. O que eu penso sobre 'Tsukuru Tazaki'? Sim, pode ser uma nova categoria."

Comparações musicais como essas ocorrem naturalmente a Murakami, que com a mulher, Yoko Takahashi, dirigiu um bar de jazz chamado Peter Cat, em Tóquio, quando os dois estavam na casa dos 20 anos. Murakami abriu o bar quando ainda era aluno de dramaturgia na Universidade Waseda. Após seu segundo romance, "Pinball", vendeu o estabelecimento e se concentrou na escrita como profissão.

De lá para cá, sua vida vem sendo a escrita e as corridas de longo percurso —relatadas em "Do Que Eu Falo Quando Falo de Corrida"—, bem como colecionar discos.

Os romances dele quase sempre destacam uma peça musical temática (o livro que o tornou sucesso no Japão, "Norwegian Wood", tinha por título o nome de uma canção dos Beatles). As harmonias incomuns de "Round Midnight", de Thelonious Monk, eram perfeitas para seu pianista assombrado, ele imaginou: "O nome de Thelonious Monk é repleto de mistérios. Monk toca sons muito estranhos como parte de seus acordes. Muito estranhos. Mas para ele, aquele é um acorde muito lógico. No entanto, quanto ouvimos a música, o acorde não soa lógico".

Enquanto isso, Tsukuru e seus ex-amigos ouvem "Le Mal du Pays", uma peça de "Anos de Peregrinação", um conjunto de suítes para piano de Liszt.

"Acordo cedo e coloco um disco, um disco de vinil, quando estou escrevendo. Não muito alto. Depois de 10 ou 15 minutos, esqueço a música, e me concentro só na escrita. Mas ainda preciso de algum tipo de música. Quando estava escrevendo 'Tsukuru Tazaki', ouvia sempre os 'Anos de Peregrinação', de Liszt, e aquela canção, 'Le Mal du Pays", ficou em minha mente, de alguma maneira. É uma linda gravação". Ao ouvi-la, Tsukuru sente como se "tivesse engolido um pedaço duro de nuvem".

Tsukuru, o adulto solitário, trabalha como projetista de estações de trem. "Existe um motivo para o meu interesse por estações de trem", Murakami começa a explicar, não sem certo mistério. O interesse data do começo de seus 20 anos, quando ele estava procurando um bom lugar em Tóquio para seu bar de jazz.

"Ouvi dizer que uma certa companhia ferroviária estava reconstruindo uma estação", ele diz. Murakami queria saber onde ficaria a nova entrada, para que seu bar pudesse ficar perto dela. "Mas isso é segredo, sabe, porque as pessoas fazem especulações". Na época, ele estava estudando dramaturgia, mas foi à companhia ferroviária e fingiu ser um pesquisador de ferrovias, e fez amizade com o encarregado do projeto de reconstrução. "Ele não me contou onde ficaria a nova entrada da estação. Mas era um bom sujeito. Divertíamo-nos juntos. Por isso, ao escrever o livro, lembrei-me daquele episódio."

"Recolhi tantas memórias, no meu baú, o baú da mente", ele diz, satisfeito. "Creio que todo mundo tenha muitas lembranças, mas encontrar a gaveta certa é um dom. Sou capaz disso. Se preciso de algo, sei em que gaveta encontrar."

Ivan Gimenez - 2011/AFP
Murakami na Espanha, em foto de 2011
Murakami na Espanha, em foto de 2011

Tsukuru se considera desinteressante, um "receptáculo vazio", mas Murakami não consegue evitar que seu herói ganhe traços de sensibilidade estética.

Em dado momento, Tsukuru vê uma cadeira em um escritório: "A cadeira era um projeto escandinavo simples, de metal cromado e couro branco. Bonita, limpa e silenciosa, sem uma gota de calor, como uma chuva fina caindo sob o sol da meia-noite". Assim, será que Tsukuru é mais interessante do que imagina ser? Com o afeto humano do escritor a ele conferido, será que qualquer pessoa não o seria?

"Não sei", diz Murakami. "Tenho muitas semelhanças com [Tsukuru]. Vejo-me como um cara comum. Não me vejo como artista, em geral. É como se eu estivesse engendrando alguma coisa". Um construtor, como Tsukuru? "Sim, isso!" Ele ri baixinho. "Gosto de escrever. Gosto de escolher a palavra certa, gosto de escrever a sentença certa. É como jardinagem ou algo assim. Você coloca a semente no solo no tempo certo, no lugar certo."

Mas esse trabalho de engenharia mental é exaustivo: uma viagem diária ao "porão da mente", e depois de volta aos pavimentos superiores. "Pode-se dizer que é um tipo de inconsciente, subconsciente... você precisa descer lá e depois voltar à superfície. Precisa se dedicar àquele trabalho. Não existe espaço de sobra para fazer outra coisa."

O estilo de Murakami é simples, e até aparentemente casual, na superfície, e "Tsukuru Tazaki", como muitos de seus romances precedentes, dividiu os críticos entre aqueles que consideram a obra banal e aqueles que percebem maior profundidade.

Como a maioria dos estilos simples, é claro, o de Murakami resulta de trabalho muito árduo. "Eu me dedico a reescrever", ele explicar. "Reescrever é minha parte favorita da escrita. A primeira vez é uma forma de tortura, às vezes. Raymond Carver [cujas obras Murakami traduziu para o japonês] dizia a mesma coisa. Fui apresentado a ele e conversamos, em 1983 e 1984, e ele me disse que o primeiro esboço é quase uma tortura, e depois você reescreve e vai melhorando, e você fica feliz porque o texto melhora, melhora e melhora."

Nunca há prazos para os romances de Murakami —"não gosto de prazos... quando está pronto, está pronto. Mas antes disso, não está pronto". Às vezes ele não sabe como decidir quando deve parar de reescrever, mas "minha mulher sabe. Sim. Às vezes ela decide que tal lugar é o melhor lugar para parar". Ele sorri e imita sua obediente resposta: "OK!"

No momento, Murakami não está escrevendo. "Depois de '1Q84'", ele diz, "fiquei muito exausto... Usualmente, quando estou exausto por escrever um romance longo, escrevo uma coleção de contos. Mas daquela vez não foi assim. Não tinha energia suficiente para descer" — ele imita uma descida ao porão. "É preciso força para descer à escuridão de sua mente".

Mas depois de concluir "Tsukuru Tazaki", Murakami escreveu seis contos em três meses. Foram publicados há algumas semanas no Japão sob o título de "Homens Sem Mulheres". Ele acha que talvez comece um novo romance no ano que vem. Um livro longo, como uma das sinfonias ímpares de Beethoven? "Acho que talvez um livro longo. Sim".

Convidado a mencionar seus escritores favoritos entre os autores atuais, Murakami elogia Kazuo Ishiguro ("acho que ele se dedica à escrita... quando não está escrevendo, viaja pelo mundo, mas quando está escrevendo não sai de casa"), Cormac McCarthy ("sempre fascinante"), e o romancista norueguês Dag Solstad, que ele está traduzindo do inglês para o japonês ("é uma espécie de escritor surrealista, romances muito estranhos. Acho que é literatura séria).

Porque ele traduziu Raymond Chandler, pergunto sobre modernos escritores policiais. "Gosto de Lee Child", ele diz, decidido, e ri. Respondo que também gosto. "Oh, você gosta dele? Isso é bom! Já li dez de seus livros!" Pergunto do que ele gostou nesses livros, e Murakami movimenta as mãos no ar como se estivesse tocando um piano invisível, e sorri: "É sempre a mesma coisa!"

Murakami não lê muitos de seus contemporâneos japoneses. Sente-se distanciado do panorama literário de seu país? "É um assunto delicado", ele diz, rindo. "Sou uma espécie de pária no mundo literário japonês. Tenho meus leitores... Mas os críticos, os escritores, muitos deles não gostam de mim". Por que seria? "Não faço ideia! Escrevo há 35 anos, e desde o começo até agora a situação foi sempre a mesma. Sou como um patinho feio. Sempre o patinho, nunca o cisne".

"Mas acredito que, em certo sentido, estejamos jogando jogos diferentes", ele prossegue. "Comecei a pensar nisso. É muito parecido, mas as regras são diferentes. O equipamento é diferente, os quadras são diferentes. Como tênis e squash". Ele imagina que seria mais aceito se conquistasse o Prêmio Nobel, como muita gente acha que conquistará? "Uh, eu prefiro não especular", ele diz, e ri. "É um assunto muito arriscado. Talvez eu fosse enforcado de um poste, não sei!"

Por quanto tempo Murakami acredita que o jogo da literatura pode perdurar? "Acho que 5% da população são leitores sérios", ele diz. "Mesmo que haja bons programas de TV, ou uma Copa do Mundo, qualquer coisa, esses 5% continuarão lendo livros com muita seriedade, entusiasmo. E se uma sociedade proscrevesse os livros, eles se refugiariam na floresta e lembrariam todos os livros. Assim, confio em sua existência. Tenho confiança."

O que ele ainda gostaria de realizar, como escritor. "Honestamente, não faço ideia", responde. "Scott Fitzgerald era meu ídolo, quando eu era moço. Mas ele morreu aos 40 e poucos anos. Amo Truman Capote, mas ele morreu aos 50 e poucos anos. E Dostoiévski é meu escritor ideal, mas ele morreu com 59 anos. Já tenho 65. Não sei o que vai acontecer! Não tenho um exemplo a seguir. Não faço ideia. Quando tiver 80 anos, o que vou escrever? Não sei. Talvez eu continue a correr e escrever... Seria ótimo. Mas ninguém sabe."

Ele diz que tenta se ver como artesão, como alguém que produz e aperfeiçoa as coisas aos poucos. "Eu adoraria ser o perfeito artesão. Por isso preciso escrever boas frases —honestas e belas e elegantes e fortes."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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