Folha de S. Paulo


Crítica: Recursos de Sérgio Sant'Anna ainda surpreendem

Mudam-se os tempos e Sérgio Sant'Anna (1941) continua a mudar, mesmo no conto, onde sua mestria está bem estabelecida desde meados dos anos 70. Após ler o seu novo livro no gênero, "O Homem-Mulher", é obrigatório constatar que os seus recursos para efetuar um conto ainda surpreendem.

São 19 contos, muito diferentes entre si, em ação (de sexo no cemitério à notícia de ataque de tubarões), tempo (da década de 70 ao pós-apocalipse), personagem (do escritor famoso a barata de container) e lugar (do Turzequistão ao largo do Machado).

Alguns contos são muito curtos e mal atingem duas páginas, outros relativamente longos e contados duas vezes, de forma a tornar apenas início o que parecia já ter avançado até o desfecho. Sexo há em quase todos, e raras vezes se escreveu "boceta" em português com tanta elegância.

Daniel Marenco/Folhapress
Sérgio Sant'Anna em sua casa, no Rio de Janeiro
Sérgio Sant'Anna em sua casa, no Rio de Janeiro

Justamente porque variam tanto, é difícil dar uma ideia coesa do livro, que, mais provavelmente, sequer exista. Mas escolho falar aqui de três linhas de força que agem sobre diversos contos: a écfrase, a epifania e a ironia da criação e da crítica.

Em relação ao primeiro ponto, sabe-se que a écfrase é a descrição de uma forma ou imagem cuja eficácia maior está em dar a ver ao leitor, como em presença, aquilo que é descrito.

Os melhores passos dessa coletânea de Sant'Anna devem-se a esse recurso, com destaque para as descrições estupendas de dois quadros com o tema da "tentação": a de Buda por uma mulher, do artista chinês Li Zhang Yang, que expôs a sua obra no Centro Cultural do Rio, em 2007; e o de um jovem padre branco por uma escrava negra, de um artista do final do século 18 (que a mim mais pareceria do final do século seguinte), escondido no porão do Museu de Belas Artes do Rio.

Há ainda uma écfrase, bela e melancólica, do retrato da mãe jovem, precocemente falecida; de dois quadros de Munch, "Madonna" e "O Grito", roubados em 2004 e recuperados dois anos depois; e até de pinturas feitas em lencinhos vendidos na rua.

A epifania, vale dizer, o arrebatamento proporcionado por uma imagem passageira, a qual, no entanto, surge como concretização de algo que a transcende, apresenta-se em lugares-chave dos contos.

O Homem-Mulher
Sérgio Sant'Anna
O Homem-Mulher
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A melhor realizada, para mim, é tópica: um casal de amantes num hotel vagabundo de uma cidade estrangeira, visto de relance pela passageira anônima de um trem. A tintura melancólica, que poderia lembrar Hopper ou Sam Sheppard, revela-se inteira aí, assim como na irrupção súbita e eufórica de uma baleia ou na, amarga, de um corpo morto na praia.

Não raro, os contos se dobram sobre si e refletem sobre o ofício do escritor. Aqui, Sant'Anna abre um leque de alternativas críticas que vão do mais grave –quando realiza que nunca será capaz de criar a obra que importa, e tenta se consolar com o "pressentimento" dela– ao mais cômico, embora cruel, quando a mulher vingativa de um escritor demonstra (por assim dizer) a ruindade da obra, traindo-o com o jovem doutorando que a estuda.

O HOMEM-MULHER
AUTOR Sérgio Sant'Anna
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 38 (184 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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