Folha de S. Paulo


'Me tornei poeta no chão da cozinha', diz escritor Mia Couto

O escritor moçambicano Mia Couto, 59, chegou com pudor ao palco do teatro do Complexo Ohtake Cultural, na noite desta quarta (4).

"Como escritor, me sinto bem e mal. O lugar do escritor é mais recatado, não o palco."

Mas, assim como o sotaque lusitano, o aparente desajeito cênico era apenas um charme do escritor. Em pouco tempo Couto conquistou a plateia com seu bom humor e boas histórias.

Ele participou do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento. Couto é um dos principais escritores da língua portuguesa na atualidade, autor de coletâneas de poesia e de romances como "Terra Sonâmbula" e "A Confissão da Leoa". No ano passado venceu o prêmio Camões, mais importante honraria da literatura em língua portuguesa.

A palestra, com mediação do jornalista Fabio Victor, editor-adjunto da "Ilustrada", teve como temas memória e história. Couto relembrou casos de sua família e tratou de seu processo de criação.

Filho de portugueses emigrados, o escritor nasceu na cidade de Beira.

"Sou filho de imigrantes. Meus pais criaram uma família como se fundassem uma nação", comentou.

Greg Saliban -24.ago.2013/Folhapress
O escritor moçambicano Mia Couto, que fala no Fronteiras do Pensamento, em passagem por São Paulo no ano passado
O escritor moçambicano Mia Couto, que fala no Fronteiras do Pensamento, em passagem por São Paulo no ano passado

Alguns dos momentos mais marcantes da infância do autor ocorreram na cozinha de sua casa.

"Eu me sentava no chão da cozinha para fazer os deveres da escola. Tinha uma mesa grande, muitas mulheres circulavam ali. Eu olhava as longas saias como se fossem cortinas se abrindo. Me tornei poeta no chão da cozinha."

"Não somos nós que guardamos as lembranças, são as lembranças que nos guardam", completou depois.

Couto também relembrou a interação entre culturas marcantes em sua formação.

"Dentro de casa ficava o lado português. Do lado de fora, a África. Mas essa linha divisória não serviu para nada. A África entrou pela porta da rua, pela varanda, pelas vozes."

Na última parte de seu discurso, fez uma defesa do poder da ficção.

"A vida é movida por histórias", afirmou. "As histórias podem manter a utopia, o desejo de mudar o mundo."

Na segunda parte do encontro, o jornalista Fabio Victor e a plateia fizeram perguntas ao autor.

"Depois de tanto falar em memória nesta noite, fiquei com uma curiosidade, como seria para o senhor não conseguir esquecer nada, tal como o personagem Funes, de Borges?", indagou Victor.

"Esquecer é tão mentiroso quanto lembrar. Há quase sempre um critério no que esquecemos", respondeu Couto.

A plateia perguntou pouco depois qual era a impressão do autor sobre o Brasil.

"Quando se chega aqui a impressão é de que há outro Brasil, fora da ideia exportada de que todas as pessoas vivem bem, são todas ricas e brancas. É uma realidade muito plural, muito complexa."

Sobre religião, Couto definiu-se como "ateu não praticante". "Estou aberto, disponível para as crenças."

Também deu conselho a novos escritores.

"Nunca pense que existe um 'escritor experiente'. Ninguém tem experiência na literatura. É como no amor, parece sempre que é a primeira vez."


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