Folha de S. Paulo


'Faço filmes poéticos, e não violentos', diz diretor Cláudio Assis

"Quantos filmes cê já fez?", pergunta o menino de dez anos, pacote de amendoim nas mãos, a Matheus Nachtergaele. "Acho que uns 30", diz o ator com bigode postiço, sentado à sombra de uma barraca, já incorporando o sotaque pernambucano. "E novela?", volta a inquirir o garoto.

Dali a pouco, eles estão na boleia de um caminhão verde com a inscrição "Quem não reage, rasteja" colada ao para-choque. Enquanto esperam "ação!", passa uma carroça puxada por bois levando tambores de água pela estrada que corta o vale do Catimbau, lugar com um quê de místico no agreste de Pernambuco.

É a segunda semana de filmagem de "Big Jato", quarto longa de ficção dirigido por Cláudio Assis ("Febre do Rato"). A história é inspirada no romance homônimo e semiautobiográfico do escritor Xico Sá, colunista da Folha.

Na trama, o Big Jato do título é o caminhão que limpa fossas de casas sem encanamento no sul do Ceará. Nachtergaele vive o motorista do caminhão, sujeito sisudo que viaja com o filho, alter-ego do escritor (vivido na adolescência por Rafael Nicácio e, na infância, por Francisco de Assis Moraes, filho do diretor).

Asley Ravel/Divulgação
Atores Francisco de Assis Moraes e Matheus Nachtergaele, que fazem filho e pai, em 'Big Jato'
Atores Francisco de Assis Moraes e Matheus Nachtergaele, que fazem filho e pai, em 'Big Jato'

"Ele veio tirando onda", conta Assis sobre como o garoto de dez anos ganhou o papel. "Disse: olha só, meu nome também é Francisco, como o personagem, e eu sou filho do diretor desse filme."

Além de viver o pai do protagonista, Nachtergaele também interpreta Nelson, o tio radialista e malandro que diz conhecer uma banda que influenciou os Beatles.

"É sobre a formação do caráter de um garoto que se descobre pelo contato com dois homens opostos e complementares", afirma o ator à Folha. "Um é livre e sem responsabilidades. O outro é grave e acredita na utilidade do trabalho que faz, que é limpar a merda do mundo."

O músico Jards Macalé faz uma participação, como o Príncipe Ribamar, figura mística vestida de fraque preto que conversa com o protagonista, Xico. "Escolhi o Jards porque ele é o príncipe da música", afirma Assis. Sentado ao seu lado, Macalé responde: "Aceitei de prima. O personagem é o louco da cidade e eu sou o louco do Rio".

Nachtergaele faz sua quarta parceria com o diretor Claudio Assis. "Ele filma um Brasil que me interessa: não é ninguém de fora, registra o que conhece", diz. "E é um cineasta raivoso, indignado."

O papel duplo, no atual estágio de sua carreira, tem trazido dificuldades, segundo o ator.

"Quanto mais o tempo corre, mais difícil fica", diz. "É como se a cada papel eu abrisse uma fresta nova. Conforme faço vários, fica complicado achar aqui dentro uma ainda não vista."

PARA MENORES

Assis já levou às telas um necrófilo que vivia num hotel na periferia do Recife ("Amarelo Manga") e um avô que prostituía a neta adolescente na zona da mata ("Baixio das Bestas"). Em "Big Jato", o diretor está "mais doce, mais leve", segundo o ator.

"O filme tem a pureza do protagonista, que é adolescente. Mas num mundo à lá Cláudio Assis: um Nordeste sem esgoto", diz Nachtergaele.

Segundo Assis, "Big Jato" será seu "primeiro filme para menores de 18 anos".

"Tem sensualidade, mas nada de mostrar sexo explícito, como nos meus outros filmes", diz o diretor nascido em Caruaru (PE). "Não é infantil, mas é sobre infância."

A guinada, afirma Assis, "não foi coisa arranjada". "Eu já queria filmar esse livro antes mesmo de ser publicado." Tanto é que seu próximo projeto, "Piedade", que ele começa a rodar neste ano, volta a tratar de violência. "Vão pensar que eu estava enganando o povo com 'Big Jato'."

Sobre a fama de diretor violento, ele logo rebate: "Isso é invenção. Violenta é a televisão mostrando caso policial para criança logo de manhã. Meus filmes são poéticos."

Em 2013, "Big Jato" foi contemplado por um edital de baixo orçamento do Ministério da Cultura e recebeu um total de R$ 1,2 milhão. Assis também havia ganhado outros R$ 467 mil de um programa de fomento pernambucano, mas a pasta federal só o autorizava a receber outros R$ 300 mil.

À época, o diretor anunciou, revoltado, que desistiria do dinheiro do ministério. Voltou atrás. "Vou usar os dois. Se quiserem me prender, me prendam. Mudei de ideia. Qual o problema? Meu filho, eu sou contraditório."


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