Folha de S. Paulo


A luta armada também foi uma organização financeira, diz Alan Pauls

No novo romance do argentino Alan Pauls, 55, o dinheiro é abordado de um ponto de vista "pornográfico" —é sinônimo de obsessão e sedução. Mais do que isso, é trazido ao primeiro plano dos acontecimentos políticos.

Em "História do Dinheiro" (Cosac Naify), que fecha uma trilogia (com "História do Pranto" e "História do Cabelo"), o objetivo é retratar a década de 70 no país.

Naqueles tempos de ditadura militar (1976-1983), o dinheiro teve papel essencial, motivando sequestros disfarçados de crimes políticos. Estava, como ainda está hoje, no centro da vida dos argentinos, obcecados com o valor do dólar e estocando bilhetes da moeda norte-americana em casa.

Apesar dos títulos enciclopédicos, os três livros são romances com tramas diferentes. No centro deste, está um garoto cujo pai é jogador e a mãe coloca todo o seu dinheiro na construção de uma casa na praia.

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O escritor argentino Alan Pauls
O escritor argentino Alan Pauls

Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

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História do Dinheiro
Alan Pauls
Historia do Dinheiro
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Folha - Este é o fechamento da trilogia sobre os anos 70. A proposta era fugir das interpretações maniqueístas que se fazem sobre o período, muitas delas motivadas por questões ideológicas do debate atual na Argentina [entre kirchneristas e anti-kirchneristas]. O que você pensa sobre o período hoje, depois dos três livros?

Alan Pauls - Eu quis que a trilogia problematizasse a época, que a tirasse desse limbo de sentido comum em que vegeta. E problematiza-la significa formular todas as perguntas que podiam colocar em questão seus malentendidos, até liquida-los.

Por exemplo, como delimitar historicamente os anos 70? Essa década está no passado ou, quarenta anos depois, segue acontecendo? O que é viver uma época? O que é atuar em uma época? Quem protagoniza uma época? Nos anos 70, atuavam sozinhos aqueles que escolhiam a luta armada? Os que narravam a época da luta armada também estavam de certo modo atuando?

Por sorte, tenho mais perguntas do que opiniões. O dia em que for o contrário, me dou um tiro.

Folha - Em todo o debate sobre a atividade guerrilheira, a formação dos sindicatos e as formas de resistência à ditadura a questão do dinheiro sempre aparece como coadjuvante da questão política, mas na verdade, sempre foi muito presente. Por que?

Pauls - O dinheiro é o reprimido por excelência da política radical. Basicamente porque a política radical se apresentava como uma alternativa à determinação econômica capitalista. Mas para gerenciar a luta de libertação era necessário ter dinheiro. Conseguir fundos, administra-los, faze-los trabalhar, render e circular.

A luta armada também foi uma organização financeira e teve seus tesoureiros, seus banqueiros, seus negócios, seus investimentos. No caso argentino, o exemplo mais famoso foi o resgate que os montoneiros [guerrilha peronista] exigiram por seus sequestrados mais célebres, os irmãos Juan e Jorge Born, em 1974.

Os US$ 40 milhões que cobraram são o dinheiro da esquerda mais lendário da história contemporânea argentina.

Porém, a ideia não é acusar a luta armada de ser "tão capitalista como o capitalismo", resposta típica da direita. Mas sim pensar outra vez que tipo de economias a esquerda inventa para tornar realidade seu mundo sem economia, suas utopias pós ou trans monetárias.

Folha - Na vida democrática da Argentina, parece ter havido uma mudança. Falar de dinheiro hoje é uma epidemia nacional, com episódios de clímax, como a hiperinflação do governo Alfonsín, a crise do "corralito" em 2001, e até os episódios recentes do governo Cristina. Quais as razões históricas que explicam essa curiosa relação dos argentinos com o dinheiro?

Pauls - É algo que tem a ver, creio, com a desconfiança histórica com relação às instituições. De todas as instituições. E o dinheiro é uma instituição. O dinheiro —inclusive o cash— é um pedaço de tempo conservado (que é o que são todas as instituições: estoques de tempo).

Na Argentina, até não faz muito tempo, as notas tinham uma legenda que dizia: "pague-se por essa nota a quantia de...".

O dinheiro é um crédito, é a formalização de um compromisso, uma promessa e uma confiança. A crise eterna da Argentina é menos uma crise material do que uma crise temporal. Não suportamos a passagem do tempo. Não suportamos que entre uma pergunta e uma resposta passe tempo. O tempo é uma ameaça, uma promessa de acidentes ou de traição (os bancos fizeram muito para implantar essa superstição durante a crise de 2001/2002). Por isso em meu romance só se fala de dinheiro em efetivo —a forma mais argentina de todas, a única que os argentinos reconhecem como válida, porque é a forma mais imediata, a que deixa entrar menos tempo na transação.

Folha - Tanto neste livro como em sua obra mais conhecida, "O Passado" (2003), existe o tema da obsessão, do vício. Concorda com essa relação entre os dois romances?

Pauls - A obsessão me interessa na medida em que é uma leitura do mundo. Os três romances desta trilogia estão armados sobre obsessões. O pranto, o cabelo e o dinheiro. O mundo (a Argentina dos anos 70) está visto através desses elementos, como se fossem uma espécie de chave mágica e total para interpreta-lo e compreende-lo. É uma leitura parcial, obviamente, e desde início arbitrária, mas ao mesmo tempo tem uma coerência absoluta. Me interessa muito a combinação de delírio e de rigor que há na obsessão.

Com relação ao vício, também é algo que reaparece em minha obra, mas é algo mais geral que a obsessão, e algo que está muito ligado à vida contemporânea.

No final do século 19, a maneira de sermos doentes (ou seja, humanos), era sermos perversos. Hoje creio que é sermos viciados. Todo mundo tem seu vício, que é pessoal e social ao mesmo tempo. Ou seja, todo o mundo tem seu segredo. Creio que o vício se converteu numa espécie de princípio geral de relação intensa com o mundo.

Folha - Outra das conexões é a do dinheiro com a sedução e o pecado. Quando o menino tira o dinheiro de seu pai para pagar o táxi, é uma mistura de delito com brinquedo. Também há sugestões de uma relação das pessoas com o dinheiro que é quase sexual. É assim?

Pauls - Não vejo tanto a relação entre dinheiro e pecado como vejo entre dinheiro e cotidiano. Ou ao menos esta é a relação que eu tinha em mente quando escrevia a novela. Só há uma coisa mais cotidiana que o dinheiro na experiência contemporânea, e é a linguagem. O dinheiro está em todas as partes, todo o tempo, sob todas as formas possíveis. Do mesmo modo, está presente em cada uma das páginas deste livro.

E aí, talvez, a coisa se conecte com a questão sexual. Quis multiplicar as "cenas de dinheiro" como os filmes pornô multiplicam as cenas de sexo explícito. Nesse sentido, sim, há uma certa obscenidade do dinheiro que pode ser sexual, mas é uma obscenidade superficial, visível, onipresente, óbvia, de maneira nenhuma vinculada com o regime do segredo, do pecado e da culpa nas quais o sexo flutua tradicionalmente.

Folha - Como foi a construção desse garoto que tem a ver com você e, imagino, com as suas recordações daquele tempo? Que papel teve a sua recente paternidade com a construção desse personagem infantil e com a relação entre pai e filho?

Pauls - Não, escrevi o livro entre 2010 e 2012, quando Remo [nome do filho] era somente o fundador de Roma. Mas os três romances estão armados ao redor desse personagem central, que é um menino, sim, mas um menino que muda, cresce e encolhe, que amadurece e rejuvenesce todo o tempo, numa espécie de rebote temporal que o envia ao passado e ao futuro constantemente.

A infância é importante para mim, mas não porque acredito que ali se funda algo decisivo e para sempre, mas porque é o lugar até onde voltamos uma e outra vez para entender o que somos até agora, e porque nos acontece o que nos acontece, e o que podemos fazer para mudar isso, etc. Síndrome freudiana? Pode ser, mas também uma síndrome histórica. Todo o raciocínio histórico pressupõe a crença no valor de algum tipo de infância. Isso está na própria ideia de que "os povos que não conhecem sua história estão condenados a repeti-la", como nos diz o slogan das políticas da memória. Há algo mais freudiano que isso?

Para mim, a infância é interessante porque é a matéria-prima de todas as nossas interpretações, as mais atinadas ou as mais descabeladas, e porque essas interpretações estão feitas desde o presente e para o presente. Mas não me interessa como verdade original, pura, fundadora, etc. A infância não é meu fetiche.

Folha - O que vem depois dessa trilogia?

Pauls - Estou trabalhando num ensaio biográfico sobre Raúl Ruiz [1941-2011], um cineasta chileno que esteve muito próximo da Unidad Popular, de Salvador Allende [1908-1973], nos anos 70, e se exiliou em 1973, após o golpe militar, na França. Ali, passou o resto de sua vida.

Trata-se de um personagem extraordinário. Um desses delirantes enciclopedistas latino-americanos que podiam discutir, de igual para igual, sobre [o filósofo e matemático britânico Alfred North] Whitehead (1861-1947) com um filósofo de Cambridge e, no dia seguinte, contradizer a um pescador de uma ilha perdida chilena sobre qual a forma mais sensata de tirar as vísceras de um peixe.

Um maestro da citação, da piada e do paradoxo. Fez 120 filmes, de todo o tipo, desde superproduções com John Malkovich e Catherine Deneuve até filmes caseiros feitos num Super-8 nos domingos em sua casa, com amigos. Um verdadeiro artista experimental, e talvez o único cineasta deliberadamente de culto no cinema latino-americano.

Folha - Economistas preveem um final de governo kirchnerista (em 2015) muito duro para os argentinos, principalmente por conta da alta inflação. Como vê isso?

Pauls - Não sei. Sou um péssimo profeta. Mas não sei se o país é facilmente "normalizável". Só que isso não é necessariamente ruim. Quando a Argentina chegou à final da Copa do Mundo, as pessoas viam em Mascherano um modelo não do cidadão, mas do país ideal. Ou seja, declarava-se a modéstia, a decência, o esforço, o perfil "low profile", como os grandes valores que marcavam o rumo que se deveria seguir. O que se pode esperar de um país que busca num jogador de futebol os parâmetros de seu bom porvenir e os segredos da sua salvação?

Mas não é só o populismo oportunista do gesto o que me cansa. É também essa pretensão de "tornar decente" a Argentina (ou qualquer outro país). A Argentina não tem de renunciar nem curar nem corrigir suas extravagâncias, mas sim deve aprender a conviver com elas de uma maneira civilizada, inventiva, e, se é possível, feliz.

E deve poder fazer circular com certa graça suas extravagâncias, num mundo onde, temos de admitir, não sejamos hipócritas, já não há —se é que alguma vez houve— países "normais".

HISTÓRIA DO DINHEIRO
AUTOR Alan Pauls
TRADUÇÃO Josely Viana
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 49,90 (192 págs.)


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