Folha de S. Paulo


Crítica: Coletânea reabilita textos teatrais de Luís de Camões

Luís de Camões ainda não era o autor de "Os Lusíadas", mas o poeta barbi-ruivo galanteador de damas do paço, o cara sem olhos que cantava as moças dos bordéis de Lisboa com poemas de Petrarca e Boscán.

O trinca-fortes da Mouraria, espadachim, envolvido em brigas na boca da noite que o levariam à cadeia por ter ferido, em dia de Corpus Christi, um Gonçalo Borges (que outro Borges, em sua mitologia pessoal, sonharia ser seu antepassado português).

Transitando nas várias esferas da vida lisboeta, Camões também marcava presença nas festivas noites em casas fidalgas. Não como autor dos sonetos elevados e das redondilhas maliciosas que já faziam o seu nome conhecido, mas como dramaturgo, autor de comédias.

Esta faceta menos conhecida de Camões seria posta para escanteio ou empurrada para as últimas páginas das edições de suas obras completas, ao longo de séculos de canonização literária, ideológica e política do autor de "Os Lusíadas".

Na mitologia crítica do poeta nacional dos barões assinalados, o teatro camoniano, popular e eficaz em sua intenção de divertir as exigentes plateias de sua época, não tinha lugar.

Tidos como apressados, mal acabados e medíocres, os três autos que chegaram até nós, o "Auto do Filodemo", o dos "Anfitriões" e o "d'El-Rei Seleuco", só recentemente passaram a merecer atenção da crítica e edições reabilitadoras.

Agora, o leitor brasileiro ganha o bem-vindo "Teatro de Camões" organizado pelo professor Márcio Muniz, da UFBA, com ortografia modernizada e esclarecedoras notas que facilitam a leitura e dirimem as dificuldades do português coloquial do século 16 para o leitor de hoje.

Como Shakespeare, Camões foi buscar em fontes clássicas popularizadas temas para suas peças. O "Auto dos Anfitriões" é uma comédia de erros, uma das muitas recriações do "Amphitruo" do comediógrafo latino Plauto.

No Brasil, foi sucesso com "Um Deus Dormiu Lá em Casa", de Guilherme de Almeida (com Tônia Carrero e Paulo Autran).

Na versão camoniana, em redondilhas lusitanas, Júpiter, apaixonado por Alcmena, assume a forma de seu marido ausente, Anfitrião, e Mercúrio a do criado Sósia. A comicidade dos diálogos entre os duplos, numa sucessão de enganos, serve também a uma reflexão sobre o aparente e o real, e acerca da identidade.

O teatro dentro do teatro encenado em "El-Rei Seleuco" discute as práticas da dramaturgia contemporânea (do século 16). Passa-se numa casa burguesa de Lisboa, atapetada, com mesa farta, e convidados que se espremem para deixar entrar o autor e os atores ("deram uma pedrada na cabeça no Anjo e rasgaram uma meia-calça ao ermitão").

A mais longa e bem acabada, o "Auto do Filodemo", foi encenada na Índia, na década de 1550, para o governador Francisco Barreto.

O humor nasce do diálogo metapoético entre Filodemo, amante pela passiva (petrarquista, neoplatônico), e o amor pela ativa do criado Duriano, a quem mais apetecia a sua "dama entre dois pratos, tosada e aparelhada, que não fique pedra sobre pedra, nem lugar sagrado em que se possa dizer missa daí a mil anos".

Dilema plenamente resolvido mais tarde, na "Ilha dos amores" de seu poema épico.

SHEILA HUE é pesquisadora, organizadora da "Antologia de Poesia Portuguesa. Século XVI. Camões Entre Seus Contemporâneos" (7 Letras).

TEATRO DE CAMÕES
ORGANIZAÇÃO Márcio Muniz
EDITORA Oficina Raquel
QUANTO R$ 42 (272 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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