Folha de S. Paulo


Novo projeto de Bjork tem colaboração de cientistas e de coral islandês

"Não tem leite de verdade", diz Bjork, olhando em sua geladeira. É um cenário comum que deve estar ocorrendo simultaneamente em milhões de casas pelo mundo afora, mas na casa de Bjork as coisas mais corriqueiras parecem surreais.

Em vez de leite de vaca, colocamos leite de coco no chá. "Se você não ligar para a aparência, não tem problema", ela argumenta.

Ela é tão.... tão Bjork. Para começar, há seu visual. Hoje é um vestido feito de painéis geométricos em tom branco sujo, com mangas bufantes exageradas. Mais tarde, quando saímos de casa, ela veste um casaco acolchoado longo, coberto de enfeites metálicos.

Parece o casaco multicolorido de José [do Velho Testamento] reinterpretado pela Barbour. E há aquela voz inconfundível em que os "erres" islandeses se chocam com um trinado cockney adquirido quando o "baterrrrista" da banda em que ela estava conseguiu shows para eles no Reino Unido e eles dormiram em apartamentos invadidos.

"Para mim, o inglês ainda está à distância de um braço", ela diz. "A gente sempre é um pouco diferente em nossa língua mãe. É por isso que talvez seja mais fácil para mim ser extrovertida em inglês. Em islandês, sou mais reservada."

Uma mulher trajando túnica longa de feltro, sem pés visíveis, de óculos de sol e chapéu de palha, entra na sala sem fazer ruído. "Esta é minha mãe", diz Bjork. Sua mãe, Hildur Rúna Hauksdóttir, é ótima companhia.

Enquanto sua filha superestrela global se arrisca tentando fazer um almoço (como está apenas fazendo uma visita de passagem à sua casa, ela não fez compras, e falta comida na casa —não apenas leite), a mãe de Bjork fuma fora de casa e, em tom de conspiração, me conta que uma antepassada distante dela foi uma garota irlandesa escravizada pelos vikings.

Ela se preocupa com o aumento do turismo na Islândia, especialmente com os enormes navios de cruzeiro e qual o impacto que podem ter sobre a vida natural. Mais tarde, leio que em 2002 ela fez greve de fome para protestar contra a construção de uma usina elétrica numa região erma do país. Sua filha aparece com uma salada, alguns pratos de madeira —um dos quais ficou empenado na máquina de lavar louça-e algumas bolachas de arroz. Almoçamos no jardim da frente.

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A cantora islandesa Bjork
A cantora islandesa Bjork

É tudo agradavelmente boêmio —um pouco como imagino que pode ter sido a comunidade hippy em que Bjork cresceu, como é sabido, (embora ela diga que a importância dela é exagerada nos relatos: "Era um grupo de pessoas gentis de cabelos compridos, que viviam juntas e ouviam Jimi Hendrix, mas tinham empregos 'normais'.")

Mas, em vista de sua condição de estrela internacional, eu esperava mais pessoas à sua volta, mais fanfarra, empregados, e não comer em plena vista do público que possa passar pela rua.

"Na Islândia não somos assim", Bjork explica. "Aqui, se você for aos banhos geotérmicos, verá o primeiro-ministro nu no chuveiro. Não existe hierarquia. Em toda família há um poeta e um pedreiro, há um escultor, e tudo se funde numa coisa só."

Os mesmos princípios igualitários se aplicam à vida islandesa como um todo, segundo Bjork. "Não há guerras entre os gêneros, guerras entre as classes sociais ou guerras entre as pessoas e as artes."

Nesta época do ano, entre janeiro e junho, Bjork geralmente é encontrada em sua outra casa, em Brooklyn Heights, Nova York, onde sua filha, Isadora (com o artista Matthew Barney) estuda na escola de artes liberais Saint Ann's. Parece uma vida muito diferente desta, aqui na Islândia, onde Bjork evidentemente se revigora com o ambiente natural. Mas ela fala com entusiasmo do parque Brooklyn Bridge.

"Quando estiver pronto, terá quase a mesma extensão que o Central Park. Além disso, tem o East River passando ao lado, então você recebe o vento do oceano Atlântico." Sentir falta do vento parece uma coisa muito islandesa.

Bjork está de volta à sua terra natal para trabalhar sobre seu projeto "Biophilia", descrito como uma "exploração multimídia do universo".

Lançado primeiramente como álbum de 2010 com o mesmo título, é uma colaboração gigantesca entre desenvolvedores de apps, cientistas, fabricantes de instrumentos e um coral feminino islandês de 24 vozes que passou mais de três anos fazendo turnê com Bjork. Mais tarde este ano será lançado um filme do show ao vivo. O filme será narrado por David Attenborough, que é fã enorme do projeto.

O grande biólogo Edward O Wilson cunhou o termo "biofilia" em seu livro desse título, publicado em 1984, em que apresentou a hipótese de que temos a tendência inata a nos associar com outras formas de vida. A ideia também pode ser interpretada como um impulso em favor do ambientalismo e da conservação: precisamos da natureza, logo, precisamos protegê-la.

A interpretação feita por Bjork é mais brincalhona; algo que começou como simplesmente um conceito artístico —"sabe, escolhendo dez canções com dez emoções e dez conexões com o mundo natural"— converteu-se num pioneiro "álbum de apps", cujo formato em iPad deu a cada faixa um app próprio incorporando interativos e até mesmo games com a música. Agora a ideia evoluiu mais, convertendo-se em uma maneira de ensinar música e ciência usando padrões da natureza.

Bjork acaba de vir de três dias de reuniões com educadores escandinavos, porque em vários países, entre eles a Islândia, o Projeto Educacional Biophilia em breve passará a fazer parte do currículo financiado pelo Conselho Nórdico. Seria difícil imaginar Michael Gove (secretário da Educação britânico) associando as escolas britânicas ao projeto no futuro próximo, mas, como diz Bjork, "educação é uma coisa na qual somos bons".

Ela diz que ela própria estudou musicologia e notação clássica, mas o sistema nunca a encorajou a realmente criar suas próprias músicas.

"Basicamente, as escolas de música são esteiras transportadoras que levam violinistas e violoncelistas para as orquestras sinfônicas", diz Bjork. "Geralmente não há lugar nenhum para os estudantes terem uma voz própria. Cria-se um clima que leva a pessoa comum a sentir que não pode entrar."

O programa Biophilia, criado para ser participativo e não acadêmico, "está fazendo sucesso com crianças que têm TDA ou dislexia". Ela solta um suspiro. "Infelizmente, isso quer dizer que temos que nos sentar e escrever um currículo, e isso é uma contradição."

A Islândia, o país de Bjork, é o paraíso de um biofílico. A menos de 30 minutos da casa de Bjork é possível ver as placas tectônicas se movimentando (modo de falar... elas se movem mais ou menos 2,5 cm por ano), em Thingvellir; a nona faixa de Biophilia, "Mutual Core", trata das placas tectônicas.

Em praticamente qualquer lugar do país você pode ver cachoeiras mergulhando na terra ou caminhar sobre campos de lava. O historiador islandês Guðmundur Hálfdanarson sugeriu que o mundo natural está tão estreitamente entremeado com a psique de seus conterrâneos que "a natureza chega perto de substituir a língua como símbolo do caráter islandês".

O resto do mundo tomou nota da importância da natureza, mesmo que tardiamente, e a Islândia se recuperou do cataclísmico colapso de seus bancos, em 2008, em parte graças ao turismo. No ano passado o país recebeu 825 mil visitantes —2,5 turistas por residente. Hoje o turismo supera a pesca, sendo o setor econômico dominante no país.

Bjork ajudou a colocar este país no mapa, mas o vulcão de nome impronunciável, o Eyjafjallajökull, também: o turismo cresceu depois de a nuvem de cinzas espalhar-se para o sul. A cobertura noticiosa para ter funcionado como um vídeo de divulgação turística, levando-nos a nos assombrar coletivamente com o teatral mundo natural da Islândia. "Game of Thrones" também pode ter ajudado.

Assim, é uma ironia trágica que, no momento em que a Islândia percebe como pode explorar suas tundras vulcânicas em favor do biofílico que existe em cada um de nós, ela enfrente sua maior ameaça ambiental.

Ativistas acusam o governo de industrializar esta grande área desabitada e intocada, especialmente a área montanhosa, através de acordos com gigantes produtores de alumínio estrangeiros, em negócios escusos que envolvem incentivos fiscais e outros não declarados.

A energia geotérmica islandesa é uma maneira barata de refinar a bauxita extraída na Austrália e nos EUA para convertê-la em alumínio, e sem recorrer a combustíveis fósseis. Mas que ninguém imagine que essa é uma maneira verde, livre de impactos ambientais, de operar a indústria. A energia geotérmica requer o desvio de grandes lagos glaciais através de barragens enormes que vão mudar a Islândia para sempre, e já foi demonstrado que os efeitos e a exploração dos campos geotérmicos provocam danos irreversíveis ao habitat, devido à poluição e às emissões.

Em maio do ano passado, a indústria global de alumínio recebeu uma ajuda: o governo de viés esquerdista foi afastado do poder por uma coalizão de centro-direita, aparentemente decidida a abrir as regiões de montanha à indústria, em nome do desenvolvimento econômico. O novo governo levou precisamente um dia para começar a levar adiante uma nova fundição de alumínio em Helguvík cuja operação tinha sido sustada.

Bjork comprou a briga. "Quero que a campanha desperte interesse no exterior", ela diz, escolhendo as palavras com cuidado. "Isso não pode ser importante apenas para nós. Para que possamos fazer parar, é preciso que interesse a todo o mundo."

Ela quer que todos se perguntem: "Você quer abrir a produção de alumínio para beneficiar algumas poucas grandes empresas ou quer preservar uma das últimas áreas de natureza intocada da Europa?"

"Se não, os 'rednecks' (caipiras americanos, como ela habitualmente se refere ao lobby pró-alumínio) poderão construir 17 barragens, e aí estará tudo acabado, mesmo que a maioria da população aqui não concorde com eles."

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Bjork, em junho de 2011
Bjork, em junho de 2011

Um movimento ambientalista nascido no próprio país é algo relativamente novo para a Islândia. As campanhas ambientais anteriores geralmente foram lançadas pelas grandes ONGs internacionais, como Greenpeace e Friends of the Earth, relativas à pesca e à caça às baleias, e a Islândia em muitos casos foi mostrada como vilã da história.

A faísca cultural que acendeu esse movimento ainda incipiente, baseado em Reykjavík, é o livro de 2006 (e posteriormente o documentário) de Andri Snær Magnason "Dreamland: a Self-help Manual for a Frightened Nation" (Terra dos sonhos: manual de autoajuda para um país amedrontado), que explora os danos decorrentes da compra de terras por estrangeiros e prevê a privatização e industrialização das áreas até agora intocadas.

Como não poderia deixar de ser, os "rednecks" retratam a oposição como uma elite metropolitana que não precisa se preocupar com a realidade econômica da pobreza nas montanhas da Islândia, onde o setor pesqueiro desabou. Bjork não é criticada por passar metade do ano longo do país?

"Sim, às vezes tenho que responder a essas perguntas", ela diz. "Mas mesmo os capitalistas de investimentos daqui hoje compreendem que nosso futuro tem que estar na natureza, e não na destruição dela. Há banqueiros que hoje têm companhias que promovem passeios de barco nos fiordes. É isso o que está mudando a cabeça das pessoas."

"Não estou dizendo que devíamos voltar ao passado e viver em cavernas, mas para avançar no século 21 com tranquilidade faz sentido abraçar a tecnologia e nos dotarmos de opções, não termos uma revolução industrial suja. Precisamos seguir um atalho para o verde!"

Até onde ela iria para proteger a natureza? Não é difícil imaginar a Bjork carismática e intensa que vemos no palco enfrentando a polícia para obstruir a construção de uma barragem.

"Não quero julgar a ação direta", ela diz com calma, "mas é um pouco masoquista, não? Se eu me acorrentasse a uma máquina de terraplanagem, o que isso realizaria?" Bjork segue uma abordagem muito mais pragmática. "Eu me lembro de ir à Inglaterra quando tinha 16 anos, e todo o mundo era vegetariano por causa de seus princípios, e nós aqui simplesmente não entendíamos isso", ela explica. "Não temos como cultivar legumes tão bem, então é um contexto diferente, sabe? Somos funcionais em relação às coisas."

Em vez de ir para as barricadas, Bjork voltou-se a um contexto que ela conhece bem: fez um concerto. Com vários luminares participando do show, incluindo Patti Smith e Of Monsters and Men, ela levantou 35 milhões de coroas islandesas (R$12 milhões) para a campanha. "Isso é muito dinheiro na Islândia", ela comenta. "O dinheiro fala e a mentira cala."

E o que eles farão com o dinheiro? "Decidimos que vamos criar um parque nacional no centro da ilha. Em vez de brigar com os 'rednecks', vamos colocar mãos na massa."

É isso que é especial em Bjork: ela é incrivelmente motivada, muito mais do que aquele mito de sonhadora, criada numa comunidade hippy, poderia fazer crer.

Sem essa força interior irredutível, é difícil imaginar como poderia ter se tornado a força cultural que ela é. Nos anos 1990 ela era tão famosa quanto qualquer dos irmãos Gallagher, ampliando as fronteiras da música eletrônica e house, sendo que até então, na música dance, as mulheres eram usadas principalmente para fazer vocais anônimos (e muitas vezes bobinhos) acompanhando os ritmos.

E ela navegou a fama com um bebê: aos 20 anos, Bjork teve seu filho, Sindri (que hoje tem 27). "Na minha primeira turnê com o Sugarcubes e com ele, eu pensei: "Ok, este garoto vai realmente amar ficar na estrada, ou então vai odiar. Se ele odiar, vou ter que voltar para casa e trabalhar numa fábrica de peixe."

A história registra que não houve necessidade da fábrica de peixe, mas deve ter sido difícil. "Acho que tive sorte. Na Islândia, naquela época, todo o mundo tinha filhos bem jovem. Sabe, nós saímos ganhando em todas aquelas pesquisas sobre os melhores lugares para as mulheres. Eu não tive que me preocupar com muitas coisas que provavelmente teriam sido mais complicadas para uma mulher na Inglaterra."

Apesar de ter feito suas escolhas muito jovem, ela fez escolhas muito boas, com frequência por instinto. A despeito das ofertas recebidas da Warner, Sony e outros gigantes do setor musical que foram até a Islândia para tentar contratar o Sugarcubes, não fazia parte da filosofia de Bjork e seus amigos assinar com uma grande gravadora.

Em vez disso, seu amigo Derek Birkett, baixista da banda punk Flux of Pink Indians, fundou a gravadora One Little Indian em volta deles, na loja de discos independentes onde todos eles trabalhavam em turnos diversos. "Eles não eram o tipo de pessoas que dizem 'deixe seus filhos em casa enquanto você faz uma turnê'", diz Bjork.

Quase 30 anos mais tarde, Birkett ainda é o empresário de Bjork, e a One Little Indian ainda é seu selo. Eles ainda são donos de uma loja de discos no centro de Reykjavík, a Bad Taste, e Bjork diz que nunca fizeram uma reunião formal.

"Saímos para passear a pé, conversamos sobre nossos filhos, e então Derek diz 'você quer tocar em Tóquio no ano que vem?', e a gente segue a partir disso." O relacionamento duradouro entre Bjork e Birkett é uma das chaves do Planeta Bjork. "A pressão só vem de pessoas que querem que você se repita, e a gente afastou essas pessoas", ela comenta. "As únicas que restaram são as que entendem que eu preciso fazer as coisas do meu jeito."

Birkett é o único editor de todo o trabalho de Bjork, desde os livros pequenos e idiossincráticos até os projetos enormes e complexos como Biophilia. Isso é crucial para Bjork, porque lhe permite criar mais. "Mais pessoas ficam esgotadas por não levar o suficiente de seu trabalho para o público", ela diz. "A partir do momento em que você produziu uma coisa, tem que lançá-la, senão você está sufocado."

Depois do almoço a mãe de Bjork nos leva de carro ao cinema local para vermos uma sessão de "Biophilia Live". O filme foi remasterizado, e Bjork quer checar o som e ver o que alguns de seus amigos pensam. Ela surge na tela usando uma enorme peruca cor de laranja, com uma faixa pintada sobre o rosto e um vestido que parece um molusco intergaláctico. Sentada no cinema, Bjork ouve atentamente.

Não existem muitos artistas capazes de combinar o ciclo de vida de uma água-viva com um breakbeat e fazer a coisa funcionar. Mas estamos falando de um trabalho extraordinário, talvez mais comparável a uma ópera, em que Bjork e o percussionista Manu Delago estão em sua melhor forma virtuosística. É totalmente desvairado, mas comovente, especialmente uma estranha canção de amor que acompanha um vírus em mutação. Assistir ao filme deveria ser obrigatório para qualquer pessoa que esteja prestes a construir uma barreira num rio glacial para facilitar a fundição de alumínio.

Depois da sessão, Bjork parece estar feliz. Seu grande clã de família e amigos está lá fora, batendo papo e curtindo o vento de Reykjavík. "Aquele homem é o pai de Bjork", diz a mãe de Bjork, cumprimentando com a cabeça um homem arrumado, de blazer. Hoje ele não se parece com um morador de uma comunidade, nem tampouco com alguém que é fã de Jimi Hendrix.

Antes de nos despedirmos, pergunto a Bjork se ela se imagina engajando-se com a causa ambiental de modo mais permanente, talvez em um sentido político. Ela me conta uma história cautelar. Seu amigo humorista, Jón Gnarr, que fundou um partido político a título de brincadeira, acabou sendo eleito e hoje, como prefeito de Reykjavík, tem 14 horas de reuniões por dia.

"No momento, posso compor canções por tanto tempo quanto eu quiser", ela diz. "Às vezes vou a reuniões, e isso é importante, mas as reuniões me deixam louca. Eu não ia querer aumentar as reuniões nem diminuir a criação de música, sabe o que quero dizer?"

Tradução de Clara Allain


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