Folha de S. Paulo


Em novo filme, Sérgio Bianchi critica a busca pelas indenizações por tortura

Ao som de "Brasil Pandeiro", sessentões festejam a recém-conquistada indenização que um deles recebeu por torturas na ditadura militar.

"R$ 500 mil por uma noite na cadeia. E não deve saber a diferença entre exílio e intercâmbio", diz uma personagem do grupo. Projetado na cena, um corpo ensanguentado pende de um pau de arara.

"Jogo das Decapitações", novo filme de Sérgio Bianchi, estreia nesta quinta (19) disparando farpas contra a geração que sofreu nas mãos do regime e hoje está "enlouquecida atrás de uma indenização", segundo o cineasta.

Na trama, Leandro (Fernando Alves Pinto) escreve tese de mestrado sobre grupos guerrilheiros. A mãe (Clarisse Abujamra) é ex-militante com ligações no governo. O pai (Paulo Cesar Pereio) é um cineasta marginal com frase profética: "No futuro, direita e esquerda jogarão o mesmo jogo".

Davi Ribeiro/Folhapress
O cineasta Sérgio Bianchi durante entrevista em sua casa, no centro da cidade de São Paulo
O cineasta Sérgio Bianchi durante entrevista em sua casa, no centro da cidade de São Paulo

Sobram críticas para a truculência policial, a lotação nos presídios, linchamentos e a violência cotidiana.

Bianchi, 68, recebeu a Folha na última segunda (16), em sua casa, no centro de São Paulo. O diretor de "Quanto Vale ou É por Quilo" (2005) e "Os Inquilinos" (2009) dizia estar "mal-humorado e estressado".
"Nem saio mais à noite. Fico vendo seriados americanos. Têm sempre final feliz e solução moral para tudo, mas vão direto na jugular. Eu também sou de ir direto na jugular."

*

Folha - Seu filme é lançado nos 50 anos do golpe militar. Foi algo proposital?

Sérgio Bianchi - A Maria do Rosário [ex-ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos] até me atacou, dizendo que eu fiz para criar polêmica. Mas não houve esse propósito, só encaixou. Terminei de filmar há dois anos. Depois fiquei captando recursos para o lançamento.

O que o levou a tratar do tema dos ex-militantes de esquerda?

Fiz parte do movimento estudantil nos anos 1960 e eu queria mostrar o que virou aquilo. São os idosos do meu filme: uma é poderosa e sem dinheiro, louca para receber uma indenização, o outro é dono de TV que faz dossiê. Outro acha que ainda faz sentido o grito revolucionário daquela época.

Ouviu críticas?

Tive o silêncio como resposta. Faz parte da cabeça colonizada dos críticos não querer refletir sobre a realidade brasileira. Nem fui tão cruel porque o que eu vejo de gente da minha idade, amigos até, enlouquecidos para conseguir a indenização...

Mas não é uma generalização tratá-los todos dessa forma?

E eu faria o quê? Colocaria bonzinhos e mauzinhos? O filme não é esse. Meu filme é um baixo astral. Tudo é reflexo de uma raiva. Fiquei profundamente mal-humorado.

Mal-humorado com o quê?
Começou a me irritar essa questão da tortura ser tratada como se fosse coisa só daquela época. Só teve lá?

Sou contra a tortura em si. Botar hoje numa cela 40 presos quando só cabem cinco não é tortura? Agora quando é com a classe média, aí não pode? É para se perguntar para a Comissão da Verdade por que só torturadores daquela época é que devem ser punidos.

O filme traz um cineasta marginal. É autobiográfico?

Não, roubei de todo mundo para construí-lo. Na época da ditadura, ninguém era a favor. Mas, no meu grupo, a gente queria outra revolução, comportamental, sexual. Éramos os "desbundados".

Seus filmes fazem denúncias sociais. Acha que o cinema tem de ser político?

Não faço crítica social: retrato o momento que estou vivendo. Não é cinema militante. Procuro as contradições da realidade. Estou falando das pessoas que, mesmo estando no poder, continuam se achando perseguidas.

Teme ser chamado de reacionário, algo comum no filme?

Não. Não sou de direita ou de esquerda. Desde jovem, não consigo entender isso. Vejo como jogam as classes. Para mim, tem burguesia e tem poder. E só.


Endereço da página: