Folha de S. Paulo


Iraquiano usa imagem de monstro em análise do país

Um homem espreita nas ruas de Bagdá à procura de pedaços de corpos destroçados pelas explosões dos carros-bomba. Ele encontra, entre os escombros, um nariz. Assim, conclui sua criatura como uma colcha de retalhos.

A ideia sombria de Ahmed Saadawi, descrita no livro "Frankenstein em Bagdá", não parecerá deslocada no Iraque. Uma década depois da invasão militar americana, o país ainda experiencia os conflitos sectários que transformaram a capital iraquiana em cenário de terror.

O autor aproveita a imagem do monstro de Frankenstein, publicada em 1818 por Mary Shelley (1797-1851), para analisar a sociedade iraquiana e seus temores. O livro recebeu, neste ano, o prêmio Arabic Booker, o mais importante do mundo árabe.

À Folha Saadawi diz que o projeto surgiu da noção de que seria possível, ao reaproveitar o personagem, oferecer uma nova leitura do que ele representa, "como uma solução para a situação enfrentada em Bagdá desde a invasão americana de 2003 e a sangrenta guerra civil".

"Nós somos o Frankenstein de Bagdá", diz, "em todas as nossas contradições, em nossos erros, em nossas visões e nas coisas ao redor".

O livro deve ser em breve traduzido ao inglês. Ainda não há perspectiva para que haja edição em português.

CONSCIÊNCIA

A obra se aproveita do tormento mental do personagem original de Shelley para analisar a sociedade iraquiana, já que o monstro é feito das partes tanto de vítimas quanto de algozes, e sofre dentro de sua consciência.

"Tentei dizer, no livro, que somos responsáveis coletivamente pela nossa experiência. Cabe a nós confessar isso ou não, como um primeiro passo para a solução desse nosso comportamento."

Porque, diz, para além da invasão americana o país viveu uma cadeia de conflitos internos que matou dezenas de milhares em seu ápice, entre 2006 e 2007, e deslocou milhões. São frequentes ainda hoje os carros-bombas que, na obra de Saadawi, levam à mutilação de corpos e, assim, à criação do monstro.

"Acusamos as outras partes e tentamos nos isentar", diz durante a entrevista. Por isso, a criatura de seu livro é, afirma Saadawi, "o herói e o criminoso de nosso tempo".

A época, em Bagdá, não é só difícil para a sociedade. A literatura, como seu reflexo, sofre também com as explosões e as sanções econômicas que aos poucos borram a fama da capital iraquiana como centro cultural da região.

No mundo árabe, diz-se que Bagdá é capital da poesia, o Cairo, da prosa, e Beirute, das editoras. Mas o lucro do petróleo no golfo e a crise política deslocaram o financiamento cultural, como evidencia o Arabic Booker, apoiado pelos Emirados Árabes.

"A habilidade iraquiana de influenciar a cultura foi afetada pelo contexto das duas últimas décadas", diz Saadawi. "Os eventos violentos acelerados no Iraque se refletem no ritmo da atividade literária e no movimento de publicação de livros."

Saadawi foi escolhido pelo prêmio Arabic Booker entre os 156 inscritos de todo o mundo árabe e recebeu um prêmio com valor de mais de R$ 100 mil. Os outros cinco finalistas receberam o equivalente a R$ 22 mil cada um.


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