Folha de S. Paulo


Escritores estrangeiros se destacam escrevendo em inglês

Em "The Other Language", o conto que dá título ao novo livro de Francesca Marciano, uma adolescente italiana chamada Emma se apaixona pelo inglês. A atração tem tudo a ver com a pessoa que fala o idioma, um intrigante garoto inglês que ela conhece na praia grega a que vai com a família, mas separar as duas meadas do desejo é uma tarefa difícil. O menino serve como porta de entrada para o idioma ou vice-versa?

Emma vive atenta à pequena colônia inglesa da ilha, de ouvidos abertos. Ouve com atenção os discos de Joni Mitchell. Não demora pra que seu caso de amor idiomático seja consumado: ela se vê falando e entendendo inglês. Transportada, ela inicia outra vida.

"Ela não sabia o que estava deixando para trás", observa o narrador no conto de Marciano, "mas aquela outra língua foi o barco em que zarpou".

É um barco carregado de escritores hoje em dia, a maioria trabalhando em inglês, mas outros em francês, alemão, espanhol, japonês ou até holandês, enriquecendo e expandindo a literatura das culturas que os receberam.

Alguns deixaram para trás seu idioma de origem depois de se verem forçados ao exílio por distúrbios políticos ou pela repressão. Outros se mudaram para outros países e mergulharam em outras culturas por espírito de aventura, encorajados pelo movimento de pessoas e ideias no último quarto de século.

Laura Sciacovelli/The New York Times
A escritora italiana Francesca Marciano faz parte da leva de autores estrangeiros que escrevem em inglês
A escritora italiana Francesca Marciano faz parte da leva de autores estrangeiros que escrevem em inglês

Uma nova diáspora literária tomou forma, propelida, como escreveu Isabelle de Courtivron em "Lives in Translation: Bilingual Writers on Identity and Creativity", "por imigração, tecnologia, pós-colonialismo e globalização", forças poderosas que "dissolveram fronteiras e aumentaram a mobilidade transnacional".

Ellen Litman, imigrante oriunda da Rússia cujo romance "Mannequin Girl" foi publicado em março nos Estados Unidos, diz que não sabe direito como se definir. "A essa altura, vivo há mais tempo nos Estados Unidos do que vivi na Rússia, e quanto mais tempo vivo aqui, mais distante fico daquela experiência".

Marciano, que cresceu em Roma, aprendeu inglês mais ou menos como sua protagonista Emma, na adolescência. Ela morou em Nova York na casa dos 20 anos e, depois de viver 10 anos no Quênia, escreveu seu primeiro romance, "Rules of the Wild", em inglês, apesar de ter começado um primeiro esboço, frustrado, em italiano. Hoje ela vive em Roma, mas o inglês se tornou como que uma segunda pele.

"Você descobre não só as palavras mas novas coisas sobre você, ao aprender um idioma", disse Marciano. "Sou uma pessoa diferente por ter me apaixonado pelo inglês. Não há como recuar. Não há como desfazer a mudança. Transformei-me nisso".

As ondas de emigração da antiga União Soviética, a primeira no final dos anos 1970 e a segunda depois do colapso do comunismo, resultaram em uma safra recorde de escritores russos que ganharam domínio do inglês. Alguns, como Gary Shteingart e Boris Fishman, cujo primeiro romance, "A Replacement Life", sai pela Harper em junho, chegaram crianças aos Estados Unidos e aprenderam inglês por osmose. Outros, como Litman, Lara Vapnyar, Kseniya Melnik, Olga Grushin e Anya Ulinich, deixaram a União Soviética na adolescência ou cedo na casa dos 20 anos, já com idade suficiente para fazer da transição a outro idioma um esforço consciente.

"Eles são todos muito fluentes, mas seu senso da linguagem é diferente", diz Karen Ryan, diretora da Escola de Artes e Ciências da Universidade Stetson, na Flórida, que já pesquisou muito sobre a literatura dos imigrantes russos. "Existe um senso lúdico e de inventividade, o que se aplica a todos os escritores transnacionais".

O escritor bósnio Aleksandar Hemon, que se viu perdido em Chicago quando a guerra engolfou sua Sarajevo natal, começou a aprender inglês aos 27 anos. Na época, diz ele, "eu falava o idioma como um turista competente".

Richard Lea-Hair/The New York Times
O paquistanês Nadeem Aslam adotou o inglês quando sua família se mudou para o Reino Unido
O paquistanês Nadeem Aslam adotou o inglês quando sua família se mudou para o Reino Unido

Hoje, Hemon, autor de "The Question of Bruno" e "The Lazarus Project", é encarado como um mago estilístico ao modo de Nabokov, inventando seu inglês em frases como "clouds and cloudettes", ou empregando o rebuscado adjetivo "boquiaberto" para descrever um vaso sanitário.

Na olimpíada dos escritores bilíngues, a equipe chinesa também é forte. Ha Jin, que emigrou da China depois da repressão do governo aos manifestantes da praça Tiananmen, em 1989, 10 anos mais tarde conquistou o National Book Award dos Estados Unidos por "Waiting", seu segundo romance em inglês. Xiaolu Guo, que se mudou para Londres em 2002, usou suas dificuldades com o idioma inglês como base para "A Concise Chinese-English Dictionary for Lovers", que disputou o Orange Prize de 2007.

A escritora chinesa mais conhecido dos norte-americanos talvez seja Yiyun Li, cujo terceiro romance em inglês, "Kinder then Solitude", foi publicado pela Random House em fevereiro. Li chegou aos Estados Unidos com um inglês bastante rudimentar, a fim de estudar imunologia na Universidade de Iowa. "Alguém me disse que Iowa City era especial e que todo mundo lá estava escrevendo um romance", ela conta. "Decidi que ia tentar".

Ela se matriculou em um curso de redação em uma faculdade popular, e depois conseguiu ser admitida pelo programa de pós-graduação em redação de sua universidade. Quando estava pronta para suas primeiras aulas, já tinha tido um conto aceito pela "Paris Review". Não demorou para que a revista "New Yorker" publicasse um segundo e para que ela conquistasse um contrato com a Random House para dois livros.

Como muitos de seus colegas bilíngues, Li fala das vantagens de escrever em um idioma estrangeiro. "Se você fala o idioma como primeira língua, as coisas são automáticas", diz. "Para mim, a cada vez que digo ou escrevo alguma coisa, tenho de primeiro me perguntar o que desejo dizer".

Alguns escritores bilíngues consideram que é libertador escapar de seu idioma de origem. "Creio que tenho menos instrumentos do que teria se estivesse escrevendo em italiano, mas minha voz fica mais livre", diz Marciano.

O sentimento é ecoado por Nancy Huston, canadense que se radicou definitivamente em Paris no começo dos anos 1970 e escreve em francês praticamente desde que começou a carreira. "Lembro-me de me sentir eufórica, de sentir que era mais fácil", ela contou em entrevista. "Não tinha as memórias, os sonhos, toda aquela bagagem".

Divulgação
Andreï Makine, escritor russo radicado na França, autor de 'O Testamento Francês
Andreï Makine, escritor russo radicado na França, autor de 'O Testamento Francês'

Depois que seu primeiro filho nasceu, no começo dos anos 1980, Huston se reconectou com o inglês e vem publicando nos dois idiomas desde os anos 1990. Seu novo romance, "Black Dance", sairá pela editora Black Cat em setembro.

Para Nadeem Aslam, autor de "The Blind Man's Garden", que teve de enfrentar o aprendizado de inglês quando sua família trocou o Paquistão pelo Reino Unido por motivos políticos, a linguagem adotiva tem um lado bom e um lado ruim. "O inglês para mim é um idioma de raiva", diz. "Mas também um idioma de amor".

O enorme poder do inglês, garantido pelo poderio econômico dos Estados Unidos e pela influência residual do antigo império britânico, o torna a linguagem literária padrão. Mas nem todo o tráfego flui em uma só direção. Há muitos exemplos. Andrei Makine, um russo que recebeu asilo na França em 1987, deslumbrou Paris com "Le Testament Français", de 1987, que conquistou o prêmio Goncourt e dois outros prêmios literários em 1995. Yoko Tawada, uma japonesa emigrada que vive em Berlim e escreve em alemão, conquistou seguidores dedicados por obras fantasmagóricas e oníricas como "Onde Começa a Europa".

"Toda literatura interessante nasce daquele momento em que você não se sente seguro de seu lugar em dada cultura", ela disse em entrevista ao jornal "Glasgow Herald" em 2008. "Por isso não me vejo como excepcional. Estou numa situação especial, mas é uma situação muito poética".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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