Folha de S. Paulo


Marina Abramovic fala sobre sofrer pela arte e distribuir armas ao público

Marina Abramovic já fez coisas aterrorizantes. Em uma galeria de sua Belgrado natal, em 1974, ela colocou 72 objetos sobre uma mesa e convidou o público a usá-los nela da maneira que preferisse. Alguns dos objetos eram benignos —um boá de penas, azeite de oliva, rosas. Outros não. "Havia uma pistola, carregada, lá, querida. Eu estava pronta para morrer".

Ao fim de seis horas, ela saiu da galeria, pingando sangue e chorando, mas viva. "Tenho muita sorte", ela diz com seu sotaque pesado, e ri.

Abramovic, 67, que às vezes se define como "a avó da arte performática", abrirá uma exposição na galeria Serpentine de Londres no mês que vem. Em seu primeiro trabalho performático no Reino Unido, Abramovic diz que será mais ousada e mais vulnerável do que em Belgrado ou no Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma), onde quatro anos atrás ela passou dias sentada em uma cadeira diante da qual visitantes se acomodavam. Alguns choravam, outros riam. Uma mulher tirou toda a roupa e teve de ser retirada pela segurança. Por oito horas ao dia, durante três meses, Abramovic ocupou seu lugar na cadeira, impassível.

A exposição "The Artist is Present" atraiu número recorde de espectadores ao Moma e se tornou uma das mais famosas e controvertidas peças de arte performática já realizadas. A Fox News ficou furiosa quanto ao significado daquilo tudo e se referiu à artista como "uma provocadora qualquer, nascida na Iugoslávia", enquanto um curador na Whitney Gallery a definia como "uma das artistas mais significativas da segunda metade do século 20". A resposta de Abramovic a tudo isso foi continuar na cadeira, sentada. Sentada. Sentada.

Em uma manhã nublada, em um estúdio em Brooklyn, a artista, usando Givenchy, seu estilista favorito, estava mordiscando alguma coisa com jeito de comida de astronauta. Para sua mostra na Serpentine, Abramovic precisa estar em forma, tanto física quanto mentalmente. Ela está em severa dieta e em breve partirá para o Brasil, para uma consulta com o pajé que a assessora psicologicamente, para garantir que sua saúde psicológica fique em ordem.

Jorge Zapata/Efe
A artista Marina Abramovic, no Centro de Arte Contemporáneo (CAC) de Málaga
A artista Marina Abramovic, no Centro de Arte Contemporáneo (CAC) de Málaga

E ela precisará disso —a mostra londrina, chamada "512 Hours" por conta do tempo que ela passará na galeria— removerá até mesmo os vestígios de estrutura que embasavam sua temporada no Moma.

Não haverá cadeira, desta vez. Em lugar disso, de 11 de junho a 25 de agosto, todos os dias e o dia todo, Abramovic circulará pela galeria onde, depois de serem instruídos a guardar seus casacos, relógios e outros aparelhos, os espectadores serão convidados a contemplá-la. "Será o público e eu, nada mais", ela diz. "Tirei os objetos do quadro. Mas o encontro..."

Abramovic sorri. "Jamais fiz algo de tão radical. É o mais imaterial que posso ser".

Quando a arte performática é ruim, é pior do que quase qualquer coisa, e mesmo as coisas boas são vulneráveis ao ridículo. No papel, a ideia parece nada: uma mulher perambulando por uma galeria —onde está a arte, nisso? As pessoas que tendem a zombar deveriam assistir ao documentário da HBO sobre a temporada de Abramovic no Moma, para ver como uma premissa nada promissora se transformou em uma série de encontros extraordinariamente comoventes.

Desde seus primeiros dias, na Sérvia, Abramovic se coloca sob extrema dificuldade física e mental a fim de tirar os espectadores de seus padrões ordinários de pensamento. "A mídia é o corpo", ela diz, o que é exatamente o que todos os artistas performáticos dizem, mas quando Abramovic se corta com uma faca ou lança seu corpo contra uma parede, a pureza de propósito de sua ação é tamanha que o espectador como que sai de si temporariamente.

É o oposto do sensacionalismo ou exibicionismo —um gesto de autorremoção, no sentido romântico do termo—, e ficar sentada imóvel durante três meses, convidando desconhecidos a interagir com ela é algo que, no contexto das vidas aflitas e repletas de distrações que vivemos, faz perfeito sentido. Não admira que pessoas tenham chorado.

"Você precisa estar em um estado de completa segurança sobre sua capacidade de criar esse espaço carismático", ela diz, e acorda no meio da noite "completamente em pânico" diante da perspectiva de repetir a experiência na Serpentine. "É um verdadeiro inferno".

Abramovic só se tornou conhecida recentemente e, além de conviver com Lady Gaga, a quem ela ajudou a desenvolver estratégias para parar de fumar —contar grãos de arroz—, a artista agora é capa de revistas de moda. Mas sua fama resulta de 40 anos de esforço.

Por décadas, Abramovic foi pobre e viveu além do mundo da arte, na obscuridade, morando por 10 anos em um furgão com seu então parceiro, o alemão Uwe Laysepien, que assinava suas peças com o nome Ulay, e percorrendo a Europa de carro; Ulay colaborou nos trabalhos seminais que ela realizou nos anos 70. (O furgão, incidentalmente, foi localizado e exibido na retrospectiva do Moma, o que levou Abramovic a uma pequena crise. "Aquele furgão", ela diz, e estremece.)

Quando ela e Ulay romperam, foi em grande estilo: transformaram a morte de seu relacionamento em uma peça chamada "The Lovers" (1988), na qual caminharam um em direção ao outro dos dois extremos da Grande Muralha da China, por diversos meses, se encontrando no meio para "dizer adeus". Se isso não representa devoção à arte, não sei o que mais pode ser.

Abramovic tem um passado difícil. Seus pais eram próximos ao regime comunista da Iugoslávia no pós-guerra e ela foi criada pela mãe em uma casa que mais parecia um acampamento militar que um lar.

Raquel Cunha/Folhapress
Marina Abramovic posa para retrato no Sesc Belenzinho
Marina Abramovic posa para retrato no Sesc Belenzinho

Em 2011, ela transformou essa infância abusiva em uma produção teatral chamada "Vida e Morte de Marina Abramovic", co-estrelada por William Dafoe e Antony Hegarty, da banda Antony and the Johnsons, na qual ela interpretava a si mesma e à sua mãe.

"Chorei em todos os ensaios, do começo ao fim", ela diz. "Então um dia Bobby [o diretor] disse que eu precisava parar com essa chatice de chorar, e que o público é que tinha de chorar, não eu. Depois de três anos de turnê pela Europa, eu estava livre. Todas aquelas histórias já não têm efeito sobre mim. Uma sensação incrível".

Isso veio depois de anos de críticas à natureza repressiva de sua família e do regime de seu país via arte performática. Em "Os Lábios de Thomas", de 1975, Abramovic entalhou uma estrela comunista de cinco pontas em seu abdome, um monstruoso mas sutil "foda-se" ao regime comunista, e uma apoderação da brutalidade do governo para fins artísticos.

Em galerias, ela e Ulay saltavam um contra o outro, gritavam um com o outro ou olhavam um para o outro por períodos intermináveis, a fim de testar, e superar, os limites da resistência. Era emocionante, chocante e, acima de tudo, moral, e uma forma de rebater as acusações de falta de sentido. O grande perigo dessa forma de arte é que a dor seja tomada por sentido.

"No começo, só masoquistas faziam merdas assim, e eram ridículos. Era gente que devia consultar um psiquiatra. É complicado explicar. Em cada cultura, existem curandeiros, magos, que suportam dores físicas incríveis porque isso representa abrir uma porta para o inconsciente. E uma forma de controlar de fato a dor, de controlar tudo. Essa é a chave", diz Abramovic

A experiência do Moma teria enlouquecido a maioria das pessoas —ficar sentada, imóvel, por todo aquele tempo, sem falar ou se mover. (Havia um buraco oculto em sua cadeira, com um urinol por baixo, que permitia que ela ficasse imóvel sem ir ao banheiro.) Abramovic não estava sonhando acordada. O ponto do exercício era exatamente o estar completamente presente, ela diz, concentrada em se conectar com quem quer que se acomodasse diante dela.

"Jamais vi tanta dor em minha vida", ela diz. O número imenso de pessoas que choraram, ela acredita, foi causado por uma situação na qual "não havia para onde ir a não ser para dentro de você mesmo. Chocante. Mas assim simples".

Antes que a mostra começasse, Abramovic e o Moma tinham dúvidas sobre o interesse dos espectadores. Mas quando a coisa decolou, celebridades começaram a visitar o museu e a se acomodar diante dela, entre as quais, inevitavelmente, James Franco. Um dia, Ulay apareceu. Abramovic violou o protocolo da mostra e tomou a mão dele do outro lado da mesa. Todo mundo aplaudiu.

"Eu não esperava que ele aparecesse. Quando ele chegou, todo mundo ficou muito sentimental a respeito, porque estavam projetando seus relacionamentos no nosso. Mas foi incrivelmente difícil. E a única vez que quebrei as regras".

Qual é sua compulsão de caminhar em direção a, em lugar de fugir das, coisas que mais a aterrorizam?

"Desde o começo, compreendi que só posso aprender com coisas de que não gosto. Se você só faz o que gosta, faz sempre a mesma merda. Sempre se apaixona pelo cara errado. Porque não há mudança. É tão fácil fazer as coisas de que gostamos. Mas o importante é que, quando você tem medo de alguma coisa, deve enfrentá-la, deve fazê-la. Isso o torna um ser humano melhor".

E qual é o custo? "Ah, muito grande. Muita solidão, querida. Se você é mulher, é quase impossível estabelecer um relacionamento. Você é um peso grande demais para qualquer um. A mulher sempre precisa interpretar esse papel de fragilidade e dependência. E se você não é frágil e dependente, eles se fascinam por você, mas apenas por um tempinho. E depois partem. Assim, muitos quartos de hotel solitários, querida".

Ulay e Abramovic se separaram em parte porque ela estava se adiantando a ele como artista, algo sobre o que ele reflete com bastante amargura no documentário da HBO, dizendo causticamente que ela se tornou "muito ambiciosa" depois que se separaram.

Abramovic foi criticada por alguns colegas por ganhar dinheiro e vestir roupas de grife quando toda a sua carreira foi dedicada a combater o materialismo —a era artística de que ela menos gosta é a arte britânica dos anos 1990, com sua "mercantilização da arte". Mas Abramovic ignora as críticas.

"Fui criticada pela minha geração de artistas, artistas dos anos 1970 —e não existe nada de mais trágico do que artistas dos anos 70 que ainda fazem arte dos anos 70—-, porque ajudo a confundir as fronteiras entre arte, moda e o pop. 'Marina não é séria porque quer estar na capa de uma revista de moda'. E alguém disse que matei a arte performática porque participei de um evento com Jay-Z. Mas quem faz as regras quanto a isso?"

Ela comenta, de qualquer forma que "amo a moda. Quem diz que você não é boa artista se usar batom vermelho e tiver as unhas bem pintadas?"

Divulgação
Performance 'The Onion', de Marina Abramovic
Performance 'The Onion', de Marina Abramovic

O trabalho dela continua a ser inimigo do materialismo. É difícil embalar e vender a arte performática, e é isso que a atraiu a essa disciplina em primeiro lugar. O mais perto que se pode chegar de algo vendável está em vídeos ou fotos de suas mostras mais conhecidas.

Em 1974, quando convidou o público a usar aqueles objetos nela, Abramovic expôs a incrível selvageria que existe por sob a superfície de seres humanos aparentemente civilizados. Inicialmente, os visitantes da galeria hesitavam em se aproximar dela. Depois, em um cenário ao modo "Senhor das Moscas", elas começaram a torturá-la com sutileza. "Ainda tenho cicatrizes de onde as pessoas me cortaram", ela diz. "Elas apanhavam um espinho da rosa e o espetavam em minha barriga. O público é capaz de matar. Era isso que eu queria ver".

Mas no Moma as transações foram mais amorosas. "Eu compreendo que você pode despertar o melhor e o pior das pessoas. E descubro como transformar aquilo que desperto em amor".

"Minha ideia no Moma era oferecer amor incondicional a todos os desconhecidos, e foi o que fiz. E a outra mostra [em Belgrado], era um desafio a toda a má energia possível —se você entrega uma serra elétrica a um cara, é como se o estivesse provocando".

Incrivelmente, pouca antes de começar sua mostra no Moma, ela iniciou também um processo de divórcio contra o artista italiano Paolo Canevari. "No final do projeto ele voltou, por um ano. Ainda mais terrível. Nada mais funcionava. Era, meu Deus, interminável. Mas há uma parte de você que fica amortecida nesses períodos. Você fica completamente vazia".

Ela tem um relacionamento no momento? "Não. É claro que sonho com o homem perfeito, que não queira me mudar. Mas não sou de forma alguma uma mulher para casar. É horrível".

"Meu sonho, porém, é ter aquelas manhãs de domingo em que você toma café e lê o jornal com alguém. Na minha vida real, sou muito antiquada, enquanto na arte sou o contrário disso. Mas acredito no amor verdadeiro, de modo que talvez ele aconteça. No momento, não. Não tenho espaço. Mas a vida bem sendo boa para comigo. Muita dor. Mas isso é OK".

É um modo extremamente bizarro de viver, e ela sabe disso. Mas não sabe como as coisas transcorrerão na Serpentine. O povo britânico é muito inibido, e também gosta de ridicularizar. "O público britânico é especialmente difícil. Muito sarcástico. Entedia-se facilmente. Não quer se envolver com algo que possa embaraçá-lo, ou torná-lo alvo de zombaria. E esse é um grande desafio". Ela parece muito nervosa.

Também está ansiosa quanto a setembro, quando estreará nova peça performática na Sean Kelly Gallery, seu lar profissional em Nova York, e mais adiante quanto ao seu 70º aniversário, para o qual o Guggenheim vai fazer a festa.

"Sou uma guerreira da arte, na verdade", ela diz, o tipo de frase que só alguém com o histórico de Abramovic pode dizer sem passar vergonha. "Quando faço coisas quero fazê-las do jeito certo, e então surge a outra Marina que é muito frágil e muito vaidosa e quer comer sorvete".

Ou, para expressar as coisas de outro modo, "adoro piadas ruins", ela diz. "Adoro gostar de tudo. E aí surge o momento de trabalhar - e isso se torna questão de vida ou morte".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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