Folha de S. Paulo


Crítica: 'Admirável Mundo Novo' erra em genética e acerta em cultura

Não é nada fácil a vida do escritor de ficção científica que se dispõe a traçar um retrato do futuro, próximo ou distante, em suas obras. A tentação de simplesmente extrapolar algumas tendências do presente que acabarão se revelando efêmeras ou desimportantes é forte demais.

É inegável que o britânico Aldous Huxley (1894-1963) caiu nessa tentação e fracassou de forma quase cômica como futurologista em seu romance "Admirável Mundo Novo" (1932), livro que agora ganha nova edição no Brasil.

OK, é possível que o fracasso cômico seja, ao menos em parte, intencional. A visão de Huxley sobre o mundo do ano 2540, uma das primeiras distopias (utopias "do mal") da literatura do século passado, é tanto advertência quanto sátira, com uma narrativa permeada de humor mesmo em alguns de seus momentos mais sombrios.

O cenário geral da história provavelmente vai soar familiar para qualquer um que conheça os inúmeros livros e filmes que se inspiraram na obra de Huxley.

Para tentar pôr fim às guerras que ameaçavam destruir a espécie humana, um governo totalitário mundial impõe o mais completo controle sobre a reprodução: pais e mães são extintos, bebês passam a ser criados em laboratório —muitos deles por meio de uma técnica de cultivo de células que produz dezenas de gêmeos idênticos de uma vez só.

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Admirável Mundo Novo
Aldous Huxley
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Uma vez nascidos (ou melhor, desenvasados), os bebês passam por um rigoroso processo de condicionamento, que inclui choques e doutrinação por meio de frases motivacionais durante o sono.

Tais técnicas complementam o uso de substâncias administradas durante a fase embrionária, num conjunto projetado para produzir castas de pessoas perfeitamente adaptadas às suas funções sociais, da "classe dominante" dos Alfas aos trabalhadores braçais Deltas e Ípsilons.

E se, por acaso, alguém se sentir desconfortável com o seu condicionamento, há um arsenal de remédios: o soma, droga recreativa "perfeita", sem efeitos colaterais; o sexo sem restrições (já que o casamento também foi abolido); e sistemas de entretenimento capazes de deixar no chinelo o cinema 3D e os jogos interativos de hoje.

SEM GENÉTICA

Há um ponto central das distopias mais recentes que não aparece nesse quadro de pesadelo: a genética. De fato, Huxley escreveu décadas antes da descoberta de que o DNA era a principal molécula da hereditariedade, e por isso teve de se contentar em descrever métodos mais toscos de manipulação biológica, como injeções de toxinas nos fetos.

Essa é a primeira e maior escorregada futurológica do livro: mesmo quando se leva em conta o DNA, uma manipulação tão precisa da natureza humana continua sendo, para todos os efeitos, impossível (e não, ninguém passa a ser o fiel escravo de um Estado totalitário ouvindo mensagens subliminares embaixo do travesseiro).

Escrevendo no período da ascensão do fascismo, Huxley também errou feio ao supor que uma escalada cada vez mais violenta de guerras mundiais estava por vir. O espectro da autodestruição nuclear, por enquanto, deteve com bastante sucesso essa possibilidade.

Por outro lado, o autor foi mais presciente no retrato que faz da cultura do entretenimento e do consumo irrefletido em sua distopia.

Desse ponto de vista, o "admirável mundo novo" está, em parte, entre nós. Por sorte, o antídoto prescrito por Huxley —Shakespeare, basicamente—, ainda pode ser obtido em qualquer livraria.

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
AUTOR Aldous Huxley
TRADUÇÃO Lino Vallandro e Vidal Serrano
EDITORA Biblioteca Azul
QUANTO R$ 39,90 (312 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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