Folha de S. Paulo


Os anos 60 no Brasil começaram em 1970, afirma Ana Maria Bahiana

Para a jornalista Ana Maria Bahiana, 1964 foi o ano em que ela escutou Beatles pela primeira vez. "Esse foi o grande marco para mim desse ano", conta em entrevista à Folha, em Brasília, onde está para participar da 2ª Bienal Brasil do Livro e da Literatura.

No evento, a autora, um dos mais respeitados nomes do jornalismo cultural no país, lança neste sábado (12), às 15h30, o "Almanaque 1964" (Companhia do Livro), obra que reúne deliciosas histórias, curiosidades e acontecimentos do ano que mudou a cara do país por mais de 20 anos.

Resultado de meticulosa pesquisa feita em vários jornais e revistas da época, além de documentos do departamento do Estado disponíveis na internet, o livro, segundo a escritora, procura ter várias vozes em sua narrativa histórica.

"É uma história com começo e meio e fim. O fim não é muito feliz, mas é com todas as vozes contando o que está acontecendo. Todas essas narrativas vão se cruzando, se empilhando e se afastando ao longo do livro", revela ela, que hoje vive em Los Angeles.

No bate-papo com a reportagem, Ana Maria Bahiana falou também de seu pessimismo com relação ao jornalismo cultural que se faz atualmente.

Segundo a autora, falta senso crítico. "Há pessoas com vontade, toda geração tem de tudo. Essa geração tem um tremendo desafio que é essa junção de cultura com tecnologia. Qualquer nova geração é crítica, mas não estou vendo essa chama crítica sendo incentivada", constata.

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Folha - Como nasceu o projeto?
Ana Maria Bahiana - Foi uma iniciativa da Companhia das letras. Eles entraram em contato comigo em Los Angeles e eu fiquei intrigada por vários motivos. Primeiro porque até ter feito o "Almanaque dos anos 70" (Ediouro), eu nunca tinha feito nenhum livro sobre o passado. E não é uma coisa importante sobre os temas do meu trabalho. Então pensei, lá vou eu para o passado de novo. Mas por outro lado pensei assim: '64 é um ano tão heavy metal, tão punk, tão barra pesada que aceitei o desafio. Conversamos sobre formato, ângulos, pontos de vistas e depois de acertado tudo foi a viagem história, cultural e emocional.

Foi dolorido remexer nessas histórias?
Não. Eu era criança em 1964, muito diferente da década de 70 que é a década formativa da minha geração e onde eu tinha absoluta noção do que era a ditadura. Então na década de 70, a ditadura é uma parte essencial da minha vida. Emocional nem tanto, a não ser quando você olhando para trás, com a perspectiva do tempo. Diante dos recursos dos documentos da época que estão disponíveis, é como você assistir em câmera lenta a um desastre de Fórmula 1 que você sabe que vai acontecer. Com excelente trilha, mas que você já sabe o final. Cada passo, cada instante, você ver as peças todas montadas no tabuleiro é emocionante. É terrível e emocionalmente ao mesmo tempo.

Onde você estava em 64, quando aconteceu o golpe militar?
Eu estava na escola, minha mãe apareceu para me buscar e eu achei ótimo porque fiquei dois dias sem aula. A única coisa que me aborreceu —eu nascida e criada em Ipanema— foi que choveu e não pude ir para praia pegar "jacaré". O que eu não entendia era porque os adultos da família estavam brigando, discutindo tanto. E era Jango, Lacerda e cassação nas conversas e eu não entendia bulhufas. Então, 64 para mim, é o ano em que ouvi os Beatles pela primeira vez. Esse é o marco de 64 para mim.

E qual música era?
"I Wanna Hold Your Hand", que era a única música deles na época que tocava no Brasil, foi na festa de turma da escola. E uma pessoa levou um compacto que os pais tinham trazido do exterior. Lembro que minhas colegas tinham me chamado para jogar vôlei e aquilo tocando e eu não conseguia sair para lugar nenhum. Sentei-me na frente da vitrola e só queria ouvir aquilo. Aí já tinha feito o estrago.

O ano de 1964 foi marcante em muitos aspectos. No campo da música, da política, da estética, comportamento... Depois de realizar esse projeto você diria que a década de 60 no Brasil começou mesmo em 1964?
Os anos 60 no Brasil começam nos anos 70 (risos). Na realidade, é. Você tem uma espécie de fac-símile, que é um constructo realmente que é a jovem guarda, não é uma coisa espontânea. É um empacotamento de algo que já existia no Brasil e no "Almanaque 64" isso está documentado, que é a turma da Tijuca, turmas de jovens que ouviam aquelas músicas de fora e tentavam interpretar. Ela é empacotada e colocada na televisão. O movimento espontâneo mesmo —que no resto do mundo se chamaria contracultura— acontece no Brasil nos anos 70, já há essa descolagem de tempo que no livro é bem visível. Acontece um monte coisas nos Estados Unidos, em Londres, enfim, discussão sobre a liberdade sexual, a politização da juventude, tudo fervendo e aqui, que já estava devagar, tem um freio que começa a ser puxado muito forte. E 64 não é o grande freio. A grande freada é em 1968. Ou seja, o auge de tudo lá e aqui é o freio de mão absoluto nas quatro rodas. Esse impulso só acontece aqui nos anos 70. Os anos 60 como a gente imagina, no mundo, começa em torno de 63 e 64 até a cara que a gente imagina que os anos 60 têm. Isso ficou muito claro na pesquisa do livro.

O que a levou a seguir carreira de jornalista de cultura?
Eu lia muito desde cedo, então qualquer coisa que eu viria a ser, teria a ver com escrever. Quando comecei a escrever ia para o escritório do meu avô e ficava na máquina de escrevendo contos, reportagem sobre coisas que aconteceram na escola. Isso era uma coisa meio inevitável. Era a opção que havia. E era bizarro porque, com toda a repressão que existia, tinha toda uma produção subterrânea sendo realizada e eu queria aquilo. Eu sabia que deu outra forma eu não ia conseguir me expressar. Eu intuía que estava documentando algo muito importante, mas não sabia quanto. Mas eu sabia que eram pessoas tão interessantes, que o que estava acontecendo era tão interessante, que era muito boa estar vendo aquilo. Essa consciência eu tinha.

Como você vê o jornalismo cultura hoje?
Não sou otimista nem um pouco. Acho que está mal. Acho que as pessoas têm que parar de ler releases e ir para rua. Não aprendi nada do que aprendi sozinha e o aprendizado não foi fácil. Essa troca não se dá mais nos dias de hoje. E o que me irrita profundamente é que tudo é empacotado. Não é mais cultura. É entretenimento. E tudo controlado pelos produtores de massa do entretenimento. A pauta, o acesso é editado por eles. Não sou muito otimista, não. Há pessoas com vontade, toda geração tem de tudo. Essa geração tem é um tremendo desafio que é essa junção de cultura com tecnologia. Qualquer nova geração é crítica. Isso está nos hormônios e eu não estou vendo essa chama crítica sendo incentivada. Pelo contrário, ela está sendo apagada para fazer uma coisa rápida, pré-formatada e sem reflexão.


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